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O Culto

 

Por: Júlio César Anjos

 

Astolfo estava desempregado. Com o seguro desemprego em dia, ele resolveu ir, ao domingo, a um culto na igreja evangélica mais próxima da sua residência. Como ele é um cidadão que desde a nascença vive no bairro, então já sabia que iria encontrar muita gente conhecida naquele lugar. Ele só não esperava que os frequentadores tivessem os tipos mais variados de viver.

 

Com calça de moletom, chinelo e camisa de algodão, Astolfo entra na igreja ainda sonâmbulo porque não tinha como costume acordar cedo no domingo para ir a um culto. Foi motivado por incentivo de vizinhos que disseram que se ele pedisse a Deus com coração, o espirito santo conseguiria arranjar um emprego. Então foi se encontrar com Ele na casa d’Ele.

 

Astolfo gosta de frequentar mais o boteco da esquina. E se alguém acha que dona de casa é fofoqueira, é porque não notou como as conversas no bar são desenroladas, que, em muitos casos, os bebuns tomam demais e também falam demais o que não deveria ser dito. Só que o álcool é salvador também, porque a maioria, ao ficar de porre, esquece até mesmo o que foi dito. Só que Astolfo, embora frequente o bar, não é de ficar de pileque. Gosta mais de confraternizar.

 

Ele senta-se na última cadeira ao fundo da igreja para não ser notado e também para não incomodar os frequentadores mais presentes na congregação.

 

Começa o rito do culto e Astolfo fica meio perdido porque ainda estava meio confuso com as sequências simbólicas impostas pelo pastor.

 

Aliás, é justamente nesta dada situação que ele para de rezar para começar a observar os frequentadores do local.

 

O pastor, dono da congregação, dois anos atrás foi fichado na polícia por fazer lavagem de dinheiro. E lá está ele, um gordão saudável, pregando como se não fosse um criminoso contumaz.

 

Observa a primeira fileira à direita do altar e lá está a família Pereira reunida -- com o pai, a mãe a filha -- para escutar as palavras do pastor corrupto.

 

Os Pereiras são terríveis. A filha está cadastrada em um site sugar daddy, uma espécie de normatização e glamourização da prostituição legalizada. O marido bate na mulher e a mulher esconde porque não tem como se sustentar. Então se sujeita a isso.

 

Na fileira de trás do outro lado do altar tem o senhor Norberto junto com a Alice. Ele trai a esposa; ela sabe. Típica corna que sabe que é corna, mas finge não ser. Isso é algo muito comum nesses casos de traição.

 

 Já a Clotilde que está acompanhada do seu filho mais novo, e que está do lado do Norberto, bate nos filhos de forma constante. A assistente social já até visitou a casa dela, mas nunca o caso avançou para que a criança tivesse defesa de agressão. Então, a criança apanha, de quando em quando, sem razão.

 

Já do outro lado do altar, no lado direito, marca presença o Ferreira. Ferreira já pegou pena por assassinato e se diz ressocializado. Mas volta e meia tenta arranjar confusão com o pessoal do boteco porque ele tem uma quedinha pra arranjar encrenca. Quem o vê quieto e bem arrumadinho desta maneira desconhece esse “cidadão”.

 

E atrás do Ferreira está a dupla dinâmica: Arthur e Douglas. Os dois ascenderam muito rápido na vida e andam pra lá e pra cá vestindo ternos chiques e carros luxuosos. O Arthur está no tráfico de drogas e o Douglas é estelionatário. Alguém está ouvindo um amém?

 

O filho adolescente da Ana, Pedro, presente na congregação, situado nas fileiras do meio do lado esquerdo do altar, é o típico ladrão de varal. Vai chegar uma hora que o povo irá querer fazer justiçamento, o que não está muito longe desse dia chegar.

 

Pedro, aliás, namora a Letícia, uma usuária de drogas que esconde o vício dos pais.

 

Atrás de Pedro e Letícia encontra-se o casal sem filhos que recém chegaram ao bairro, a Beatriz e o Fernando, que fazem poliamor com rituais de bondage. Tudo discreto para a comunidade não saber.

 

Perto do Astolfo, no lado direito do altar, está a família Santos. Seria a família mais normal do recinto se o filho pequeno deles, o João, não gostasse de matar gatos. Vive chutando, jogando bombinha e machucando gatos e cachorros da vizinhança.  Um psicopatinha promissor.

 

Além disso, Oyama, amigo do filho mais velho da família Santos, era um exímio frequentador da congregação. Mas virou travesti. E travesti em igreja não pode frequentar.

 

E, por fim, os obreiros são milicianos que sabem tudo isso que o Astolfo também sabe, mas que recebem propinas para dar ar de normalidade diante toda essa situação.

 

Vendo tudo isso, Astolfo pensou:

 

Dizem que as pessoas vão para a igreja por três razões: falta de dinheiro (falência), falta de saúde (doença) ou falta de amor (casamento). E isso é parcialmente verdadeiro. Porque há um quarto tipo de pessoa que frequenta a igreja somente para criar uma imagem positiva, de marketing pessoal, como a de ser um ótimo individuo respeitável da sociedade, um digno “cidadão de bem”.

 

É tipo: “olha, eu frequento uma igreja evangélica, então sou boa pessoa”.  

 

Samuel Johnson, certa feita, disse que: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. É porque ele não frequentou a igreja da vila.

 

Todos bem vestidos e o Astolfo todo desalinhado. O boteco ainda estava fechado. O homem desempregado aprendeu uma lição. E assim como entrou sem ser visto saiu sem ser notado. Ele então resolveu recolher-se para o seu humilde lar. Porque na igreja não dava mais de ficar. Mais insalubre e periculoso que o bar.

  

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O Culto de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em https://efeitoorloff.blogspot.com.

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