Por: Júlio César Anjos
Havia
nos primórdios da civilização uma região chamada Saçar. E nesta localidade,
como tantas outras conhecidas ao estudar antropologias ancestrais, também havia duas civilizações conflitantes que, de tempo em tempo, entravam em tensão. Como
sabido, estas duas sociedades eram segregacionistas, sendo que um povoado não
podia se misturar com outro. A divisa se dava entre as margens do rio. Do lado
direito, ficava a tribo Ocnarb; do lado esquerdo, o povo Orgen. E diante,
circunstâncias, o rio não era de ninguém.
Como
o rio não era de ninguém, o rio era de todo mundo. Porque todos os viventes da
localidade, tanto do povo da esquerda quanto da direita das margens do leito,
tinham que se banhar e lavar suas indumentárias no córrego, além de fazer atividade
de lazer ao se banhar e brincar com a corredeira. Deste modo, o rio era o
lugar, inevitável, de encontro entre as duas civilizações que se odiavam sem
parar. Mas o rio que dá vida é o mesmo que oferece a morte. Na parte da
nascente há sumidouro; e a foz tem uma catarata íngreme e com correnteza forte.
É por isso que, inexoravelmente, os dois povos utilizavam mais ou menos a
parte intermediária do açude, local com correnteza mais suave e com água menos
mexida e mais límpida também.
Tudo
corria na normalidade até acontecer um fenômeno inusitado: nasceu uma criança
no território de Ocnarb com características semelhantes às de um vivente da
região de Orgen. Diante desta exceção, o povo do lado direito do rio relevou a
situação e tocou a vida ao natural. Não demorou muito tempo, uma jovem de Orgen
teve um filho parecido em características também com um morador de Ocnarb.
Orgen também relevou esta condição para manter tudo trivial. O que não foi
habitual é que houve aumento de filho parecido com Orgen na província de Ocnarb
e aumento de criança parecida com Ocnarb na região de Orgen. Era um aumento de
crianças com características dos dois povos que fez com que os anciões tivessem
que se manifestar a respeito.
Com
essa mudança de padrão, os anciões dos dois lados conflitantes resolveram
investigar o assunto. E descobriram que o problema era o rio em questão. O
açude virou ponto de encontro de jovens das duas tribos que iam para esse lugar
namorar. E o resultado do namoro fez gerar essa mistureba hereditária difícil
de explicar.
Os
dois anciões dos dois povos fazem um acordo para manter a tradição e a divisão
regional e hereditária entre as duas civilizações: daquele momento em diante,
qualquer criança que tivesse características que não fossem puras, os pais dos
povoados seriam assassinados e as crianças recém-nascidas seriam descartadas na
nascente do rio. Era uma pena de morte às crianças, pois, na nascente há
sumidouro e na foz há queda d’água de forte intensidade.
A
esse tipo de rebento constituído na fusão entre o Ocnarb e o Orgen foi batizado
pelos dois povos de Odrap. Então, todo recém-nascido que tivesse
características tanto de Ocnarb quando de Orgen seria chamado de Odrap e seria
banido das duas regiões, ao serem descartados no rio, por meio de uma pequena
jangada. Se não morresse pela força da água, morreria por vulnerabilidade
contra predador ou de fome diante as intempéries da natureza.
Colocar
a criança numa pequena jangada e lançá-la ao rio servia tanto para que as
pessoas das duas tribos aprendessem a punição de maneira visual quanto para atender
a questão religiosa, em que a criança servia como oferenda para o demônio não
atingir as duas regiões.
Mas
se a punição era para ser algo raro porque amedrontaria os jovens das duas
populações, o fato é que a exceção começou a virar regra. Alguém estava a lavar
roupa no açude? De repente aparecia uma criança chorando dentro da jangada no
leito do rio em direção à catarata da foz. Alguém se banhava ou pescava? A
mesma coisa. Ou seja, por mais que a punição fosse uma pena de morte para a
criança e para os pais, mesmo assim o amor entre jovens dos povos diferentes
era maior que a punição em si. A explicação talvez seja que a curiosidade e
vontade de experimentar, frutos da liberdade, são bons indícios sobre as ações
dos jovens de se relacionarem neste amor proibido. E como sabido, o proibido é
mais gostoso. Isso significa que o amor pode superar até mesmo o medo da morte.
Tudo
parecia normal por décadas. Até que chegou um período histórico. 70 anos se
passou. E não se sabe como as primeiras crianças sobreviveram aos intempéries da
natureza, mas o fato é que a civilização Odrap conseguiu se firmar na Terra Baixa,
cuja localização fica após a queda da catarata. Este povoado ficava sempre em
sentinela antes da Foz do rio para capturar um bebê na jangada, antes de ser
engolido pela correnteza do açude. Uma civilização totalmente criada pelo
rejeito tanto do povo Orgen quanto da tribo Ocnarb. Os descartes dos dois povos
viraram cidadãos de Odrap.
Nesse
tempo todo, enquanto a civilização Odrap ganhava população até o ponto de ser
equivalente em demografia do que as outras duas tribos, os dois povos, tanto
Orgen quanto Ocnarb, estavam em grande tensão por vários motivos que já vinha
há longo tempo, além da animosidade sobre quem é o verdadeiro culpado por ter
criado a civilização Odrap. O Ocnarb achava que era estratégia do Orgen para
uma futura aliança, e vice-versa. Mas o fato é que os dois povos, espontaneamente,
fizeram Odrap surgir por causa da lei absurda de descartar crianças no rio.
Essa discussão virou o principal motivo da guerra que estaria por vir.
E o inevitável aconteceu. A
grande guerra na região de Saçar começou. Foi um conflito que durou muito tempo,
entre ataques vindos tanto do lado direito quanto do esquerdo do rio. O povo
Orgen venceu a guerra combatida contra o povo Ocnarb. Mas foi uma vitória de Pirro.
Enfraquecido
mesmo tendo vencido, o povo Orgen ficou vulnerável e combalido. O povo Odrap,
ao somente observar toda a confusão, fez raciocínio lógico e resolveu agir. Afinal,
por que o povo Odrap ficaria vivendo na Terra Baixa, sendo que os dois povos de
Saçar ficaram enfraquecidos pela guerra ao ponto de tornarem-se militarmente inexistentes?
Todo
o povo de Odrap sobe a montanha em direção a Saçar. Vendo o tamanho da
civilização, o povo Orgen se rende sem haver uma só confusão. O ancião de Odrap
chamado: “O Primeiro Homem”, o pai fundador da tribo Odrap, reflete um pouco, diz
que não quer se parecer com as duas civilizações aniquiladas pelo conflito
torpe, e toma a decisão contrária ao que estava estabelecido. Justamente o que
gerou a guerra foi a cisão, a divisão, a segregação, e a decisão então foi que,
a partir de agora, todos devem ser livres como um povo só.
Odrap
fez uma ponte física para unir a região. Mas também fez a ponte social ao acabar
com a pena de morte de bebês miscigenados. Todo mundo podia casar com todo
mundo. Odrap com Odrap; Orgen com Orgen; Ocnarb com Ocnarb; Odrap com Ocnarb; Odrap
com Orgen; Orgen com Ocnarb.
O
povo Odrap unifica a região e rebatiza a localidade geográfica de Açar. E cunha
a expressão de união: Só existe uma Açar; A Açar humana!
E toda a região de Açar vive em paz até hoje.
Açar de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em https://efeitoorloff.blogspot.com.
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