Por: Júlio César Anjos
Deus
cancelou o mundo. Acabou. E com isso os seres humanos descobriram que o homem
não é a imagem e semelhança do criador. E também se descobriu que o inferno não
existe, o que se realiza é somente a inexistência e o que pode ser chamado de
Céu. Aqueles que não atenderam parâmetros para a inserção ao além-vida
desapareceram; e aqueles que preencheram os requisitos foram para o paraíso.
No
paraíso, Deus ficou saudosista. Queria se lembrar da época em que fez a criação
mais inusitada da plenitude. E resolveu pedir uma apresentação de lembrança da
Terra para 6 ex-terráqueos: Rússia; EUA; Líbano; Madagascar; Grécia; e Brasil.
E
o ser onipotente-onisciente-onipresente deu o período de 1 tempo-Deus para
realizarem a tarefa, o que significava 15 dias no planeta Terra, para exibirem
características das suas regiões. Caso não fizessem o pedido, seriam apenados
com perdas de regalias. Sim, o paraíso é meritório.
O
período de um tempo-Deus se passou. Numa sala imaginária, lá estão todos sentados
em um espaço sem chão nem teto, sem profundidade nem largura, apenas a brancura
e cadeiras incolores para sentarem em circulo.
Deus
para não assustar as criações está parecido com os homens, em imagem e semelhança.
A
Divindade também resolveu desativar a lembrança, para ter uma melhor experiência
do mundo a qual ela mesma criou.
Deste
modo, também não há diferença linguística no paraíso. Então, o brasileiro pode
perfeitamente entender bem a sutileza da língua malgache de Madagascar, assim
como um russo pode entender a língua árabe do libanês de Beirute sem problema
algum.
Quanto
à questão de equipamento para apresentação, basta Deus estalar os dedos para
aparecer qualquer instrumento, seja um projetor, um quadro ou qualquer
equipamento audiovisual que seja.
Ao
estarem todos reunidos, Deus pede para que comecem as apresentações regionais.
O
primeiro a iniciar foi o norte-americano.
A
primeira coisa que ianque mostrou foi uma astronave.
E com a nave espacial projetada em holografia, o estadunidense começou a mostrar
toda a grandeza dos EUA, ao ter dominado amplamente as matérias de matemática
avançada e física, ao explicar que tal país foi o que mais próximo chegou a Deus
[o que não é verdade] ao explorar o espaço.
Ao
dar uma cutucada no russo, ao dizer que os americanos pisaram primeiro na lua,
recebeu logo em seguida o retruque do eslavo, ao ser informado que foi Gagarin quem
disse que a Terra era azul.
Deus
pede para os dois pararem de discutir sobre banalidades.
E
após provocações, todos bateram palmas ao se lembrarem dos grandes feitos deste
povo em questão.
Seguindo
o fluxo, o próximo a apresentar foi o Russo.
O
russo fez uma apresentação de bricolagem de recortes históricos em quadro-negro.
E ao avançar nas informações, destacou que o país já foi potência mundial, ao
rivalizar com os EUA, e o grande feito foi propagar a ideia sociológica de
classe trabalhadora comunista e de ter gerado avanços nos estudos de física e
biologia para fins atômicos.
E
de volta o russo discute com o norte-americano, pois, enquanto aquele dizia que
venceu a guerra fria, este informou que fora o capitalismo que acelerou o fim
do mundo.
Deus
de novo aparta a discussão.
Finalizada
a apresentação, todos ficaram admirados, exceto Deus, com os feitos da Rússia e
também aplaudiram a demonstração.
Continuando
as tratativas, chegou a vez do libanês de Beirute fazer exibição. Ele fez
questão de frisar que é de Beirute porque
há algumas regiões do Líbano que são diferentes.
O
beirutense preferiu fazer uma apresentação virtual de uma viagem guiada. Foi a
forma encontrada para que Deus e os colegas pudessem explorar a cultura árabe
com mais profundidade.
Deste
modo, o libanês mostrou as madraças, a escritura árabe peculiar, as mesquitas e
toda a riqueza cultural do seu povo.
E
o libanês emendou: enquanto os dois anteriores estavam preocupados com domínio
do globo terrestre, os árabes estavam preocupados em defender cultura e os
valores do seu povo.
E
ninguém quis bater boca porque já estavam todos cansados com discussão sem
sentido. Afinal, já estavam no paraíso e essas amenidades eram irrelevantes.
O
beirutense terminou a apresentação e todos também bateram palmas pela exuberância
daquela região.
Continuando
a fila de exposição, deste modo, chegou a vez do representante de Madagascar
fazer a apresentação.
O malgache decidiu fazer uma apresentação 3-D
imersiva de realidade aumentada sobre toda a África e não só no país insular.
E
neste momento o malgache exibiu toda a riqueza natural da África, com as savanas
com animais exóticos, uma diversidade de riquezas catalogadas em livros de
biologia e geografia, em que os animais e planícies de Madagascar deixaram todos os assistentes felizes e impressionados.
E
o malgache terminou a apresentação dizendo que: enquanto os outros povos iam
atrás de riquezas materiais, os africanos tinham a verdadeira riqueza
disponível, ou seja, tudo o que a natureza podia ofertar.
Todos
bateram palmas para o malgache.
A
apresentação já estava chegando ao fim e nada de Deus ficar impressionado.
Neste
momento, levantou-se o penúltimo sujeito a fazer apresentação: o grego.
O
grego, representando a Europa, trouxe consigo a coletânea de literatura épica
clássica. E com holografia de ilustrações, o europeu mostrou todas as grandes
histórias mitológicas da era grega, berço do avanço cultural ocidental.
Com
a Odisseia como principal documento,
o europeu disse que a literatura é a ferramenta para a criação de todas as
outras coisas porque aperfeiçoa a imaginação. Sem literatura não haveria contos
nem possibilidades, o que faria o mundo continuar primitivo e sem avanço
intelectual.
Graças
à literatura épica que o homem evoluiu grandiosamente, ao ponto de ser
organizar em polis [cidades] e pensar coletivo de maneira geral.
E
como de praxe, todo mundo aplaudiu o fim da apresentação do grego.
Deus,
a esta altura, já estava a bocejar.
Até
que chegou a vez da última apresentação: a do brasileiro.
O
brasileiro trouxe consigo um CD de música e pediu para que Deus materializasse
um tocador de CD.
Os
presentes, ao verem que a canção se tratava de uma música de Axé, começaram a
ironizar o brasileiro, já que, segundo os colegas, o estilo musical não agregou
nada para a humanidade. Todos riram do brasileiro porque as apresentações já
tinham mostrado tudo: natureza [Madagascar], cultura [Líbano – Beirute],
tecnologias [Rússia e EUA] e Literatura Épica [Grécia].
Um
dos presentes retrucou: “onde já se viu tanta ousadia, Axé não é alta cultura”.
E todos assentiram com a cabeça.
O
brasileiro, de forma calma e polida não se deu por vencido, só pediu para que
os presentes prestassem atenção na letra da música.
Colocou o CD no tocador, ajustou bem na faixa temporal em que desejara iniciar a canção,
cruzou os braços, e deixou a música levar:
♫“Sobre o Rio, Beirute
ou
Madagascar
Toda a Terra
Reduzida a nada
Nada mais”♫
O
malgache e o libanês entenderam a referência. A Terra reduzida a nada significava
que a natureza e a cultura ficaram pra trás porque o mundo acabou.
♫E minha vida é um flash
De controles, botões anti-atômicos
Olha bem, meu amor
No final da odisséia
terrestre
Sou Adão e você, você será...♫
E
nesta parte os que ficaram envergonhados foram o russo, que se achava o máximo
por fazer bomba atômica, e o grego, ao saber que a literatura épica não
serviria para nada no paraíso.
♫Minha pequena Eva
O nosso amor na última astronave
Além do infinito eu vou voar
Sozinho com você♫
E
neste momento o norte-americano entendeu a indireta, pois, não precisaria mais
de astronave no paraíso. Porque, como dizia Marx, toda matéria se dissolve no
ar. E dissolveu, com o fim do mundo.
Neste
instante, Deus que está metamorfoseado como um ser humano vê os pelos da pele
se arrepiarem ao escutar a música, e, enfim sentiu o gosto de resgatar o saudosismo
ao se deixar levar, o que fez o criador transportar todos os presentes para o
show de Axé no qual o CD foi gravado.
E
num estalar de dedos, Deus levou todos os presentes para a gravação do CD da
Banda Eva, cuja cantora era Ivete Sangalo, em Salvador e no ano de 1997, época
em que o presidente era o Fernando Henrique Cardoso e o Brasil era respeitado
internacionalmente.
E
sentindo a vibração de toda uma multidão entoando as canções de amor naquele
festival em questão, Deus olhou para os demais e disse: “isso é o verdadeiro paraíso,
era isso o que eu queria resgatar!”.
Finalmente
Deus ficou muito feliz com o saudosismo da sua criação.
E
parece que até hoje Deus anda a cantarolar, pela plenitude, ao murmurar a música:
Pequena Eva, interpretada pela Ivete Sangalo:
♫Minha pequena Eva [Eva]
O nosso amor na última astronave [Eva]
Além do infinito eu vou voar
Sozinho com você ♫
E todos ficaram boquiabertos ao saberem que o paraíso é uma música de Axé.
E todos ficaram boquiabertos ao saberem que o paraíso é uma música de Axé.
***
Agora que se descobriu que o paraíso é uma música de Axé,
dá uma olhada na letra da música “Pequena Eva”, da banda Rádio Taxi, feita em
1983 pelo compositor Umberto Tozzi, e diga a verdade: isso é ou não é alta
cultura?
Desde
a gênese até o apocalipse, passando pelas belezas naturais até ações épicas,
com citações tecnológicas e românticas, tudo isso em estrofes juntadas em
versos. Some-se isso à qualidade de interpretação da Ivete Sangalo com a
vibração do Axé nordestino, o resultado não é outra coisa a não ser alta
cultura.
A época em que o brasileiro esteve mais feliz foi nos anos 90. Não há dúvida quanto a isso.
Pequena Eva – Ivete Sangalo:
Meu amor,
Olha só
Hoje o sol não apareceu
É o fim,
Da aventura humana na Terra
Meu planeta Deus
Fugiremos nós dois na arca de Noé
Olha bem meu amor,
O final da odisséia terrestre
Sou Adão e você será...
Minha pequena Eva
O nosso amor na última astronave
Além do infinito eu vou voar
Sozinho com você
E voando bem alto
Me abraça pelo espaço de um instante
Me envolve com teu corpo e me dá
A força pra viver
Pelo espaço de um instante
Afinal, não há nada mais
Que céu azul
Sobre o Rio, Beirute ou
Madagascar
Toda a Terra
Reduzida a nada
Nada mais
E minha vida é um flash
De controles, botões anti-atômicos
Olha bem, meu amor
No final da odisséia, terrestre
Sou Adão e você, você será...
Minha pequena Eva
O nosso amor na última astronave
Além do infinito eu vou voar
Sozinho com você
E voando bem alto
Me abraça pelo espaço de um instante
Me envolve com teu corpo e me dá
A força pra viver
Paraíso é uma Música de Axé de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em https://efeitoorloff.blogspot.com.
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