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Acredite no Sonho

Por: Júlio César Anjos

Desgastado por ter sofrido um dia muito agitado, o cair da noite só fez restar uma coisa: descansar. Coloco a música Dreams, da Grace Slick, no volume baixo e ligo o play no tocador. Deito-me na cama e fecho os olhos.

***

É uma estrada reta. Estou descalço, pisando bem na linha que divide os sentidos da rua.

Enquanto ando, coisas inusitadas começam a aparecer.

Ao olhar para o lado direito, vejo uma loja de astrologia. Lá dentro está chovendo. As gostas d’água são grandes. E cada gota está escrito um palavrão. O Olavo de Carvalho está dentro do estabelecimento todo feliz, ao estar envolto a uma chuva de palavrões.

Já no lado esquerdo há uma livraria chamada USP. Lá dentro também está chovendo com gotas d’águas grandes. Só que as gotas estão com palavras de sabedoria. A Chauí está com um guarda-chuva, rabugenta como sempre, protegendo-se do conhecimento. Na parte de dentro do guarda-chuva está escrito: “Horror da classe média”.

Percebo também que estou num processo de sonho lúcido. Mas tal onirismo não me permite parar de caminhar, somente seguir em frente, e toda vez que olho para um lado e torno a voltar olhar para outro, o fenômeno anterior desaparece. Então, só resta andar e seguir em frente.

No lado direito há uma loja chamada Antagonista. Os clientes compram os produtos organizados em caixas. E na frente de cada caixa há o nome gravado dos títulos dos textos publicados no site. E o atendente do estabelecimento é o Diogo Mainardi.

Olho para o lado esquerdo e vejo exatamente a mesma coisa no outro lado da rua. Mas a loja agora se chama Intercept. E o atendente é o Glenn Greenwald. Assim como no Antagonista, as notícias estão encaixotadas e vendidas como mercadoria.

Todavia, ao menos senti algo curioso: tanto os clientes do Antagonista quanto do Intercept saíram das respectivas lojas e vieram me acompanhar. Tenho a sensação, embora não consiga enxergar, que estão atrás de mim.

Subitamente, um menino silenciosamente entrega-me um óculos. Coloco o óculos e começo a ver que no lado direito da rua todas as pessoas estão com o rosto do Hitler; e no lado esquerdo, todas as pessoas estão com o rosto do Stalin. O lado bom é que meu sonho lúcido permitiu, ao menos, que eu pudesse descartar o óculos porque não queria estar no filme: Eles vivem, do Carpenter. Menos mal.

Continuo a andar.

De repente, um susto. No lado esquerdo vejo a Carla Zambelli como vendedora de um sexy shop, de topless, e com uma plaquinha escondendo os peitos à mostra com os dizeres: Femen.

Fico curioso para saber o que tem no lado direito e vejo a mesma Carla Zambelli usando um terninho, bem comportada, atendente em uma loja que vende serviço de etiqueta social, com a plaquinha no peito escrito: Nas Ruas.

Repentinamente aparece uma bonita moça abraçada a mim. Ela olha a aliança dela, em seguida fita a minha mão. Eu olho para o meu dedo anelar e vejo que estou de aliança. Felizmente, é minha namorada.

Continuo a caminhar; e avistando para o lado esquerdo vejo uma taberna. As Putinhas Aborteiras com roupas comportadas ensaiando uma música. Mas não consigo escutar nada porque estou ouvindo a música Dreams.

Torno a avistar para direita e vejo a La Banda Loka Liberal também treinando uma música, em uma loja de CDs, porém vestidos com roupas fúnebres. Também como no caso das Putinhas Aborteiras não consigo escutá-los porque estou ouvindo Grace Slick.

Não consigo parar de andar e continuo a seguir em frente.

Olho um pouco em linha reta para ver o que tem no horizonte. Neste momento tudo some e tudo fica branco, num cenário quase vazio. Somente está escrito em minha direção um outdoor com a seguinte legenda: em frente!

Nessa altura, tenho a sensação que muitas pessoas estão me seguindo, pois, acredito que se desprenderam das lojas que já foram vistas por mim, em sonho.

Continuo a andar.

Consigo parar de caminhar por um breve instante. Um senhor de idade vem até mim e entrega um sapato.

Calço o sapato. O cenário escurece. Paro de escutar a música Dreams, de Grace Slick.

E nesse momento vejo as duas lojas de paintball, tanto a que está na direita chamada Milícia quanto a que está na esquerda chamada PCC. Os dois grupos estão atirando um no outro sem parar.

Olho pra baixo e vejo as pessoas agonizando tanto na sarjeta da direita quanto na sarjeta da esquerda. E essas pessoas estão derretendo no meio-fio. Enquanto derretem, esticam o braço e dizem: “vem pra cá”.

Tiro o sapato e volto a ver na minha frente tudo branco e o outdoor no horizonte com a frase: em frente!

Volto a andar.

Olho para a esquerda e vejo uma loja de material de construção chamada Odebrecht e que está vendendo sacos de cimento com a marca corrupção. O atendente chama-se José Dirceu.

 Já no lado direito há uma empresa que vende suco natural chamado de Laranjal Queiroz. O atendente chama-se Flavio Bolsonaro.

Continuo a saga.

No lado esquerdo há uma lava jato chamada Perda Total. E na frente está em exposição o Lula preso numa gaiola com um cartaz: “não podem prender uma ideia”. O dono da empresa é voluntário em uma campanha contra corrupção política.

E no lado direito está uma lavanderia chamada Universal. O dono Edir Macedo está junto com o Bolsonaro. E os dois fazem arminha com a mão para os clientes, que devolvem a expressão com palavras de ordem: “mito!".


Paro de andar. Perco o sonho lucido e vou para o sonho criativo. Ao enxergar holisticamente pela visão superior, eu estou no meio de uma rua. E atrás de mim está uma multidão.

Todos aqueles que estavam na esquerda ou na direita saíram dos estabelecimentos e da sarjeta e acompanharam-me a seguir em frente.

***
O despertador toca. É hora de acordar.

Após escovar os dentes, dou um beijo na minha namorada. E, após dar bom dia, comento sobre o sonho que tive:

“Amor, tive um sonho lúcido. Sonhei com a música da Grace Slick.”

Andando em direção à porta, digo para a minha namorada: “tenho que ir trabalhar. Seguir em frente”.

E fui trabalhar.



Grace Slick - Dreams


For all you high-stepping sexy witches
Para todos as bruxas sensuais de salto alto

Sons of satin, son-of-bitches
Filhos de cetim, filho da p@t@

All were there, in my dreams
Todos estavam lá, nos meus sonhos

All in my dreams
Tudo em meus sonhos

My dreams ooh my dreams

Meus sonhos ooh meus sonhos




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