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Sumidouro dos Desvalidos

Por: Júlio César Anjos

Pedro

A boa noticia é que parou aquela incessante dor de dente que Pedro estava sofrendo sem parar. Caiu o último incisivo que fazia a resistência de perdurar em sua boca, cuja se materializava somente em sofrimento e que não tinha mais serventia para nada. Não há dor naquilo que não se tem. É preciso ter para doer. O dente? Não. Serve também pra qualquer coisa que o valha.

Mesmo banguela, o homem estava, por um breve momento, radiante: uma dor a menos para suportar.  Para quem não tem nada, isso é algo muito significativo. Então, fez o que mais sabe fazer, beber para comemorar.

Pedro tinha mais coisas que o fazia lembrar, e por isso doía, o que o tempo fez questão de anestesiar. Idoso, o maltrapilho não viveu sempre na rua, pois, tinha emprego, família e um abrigo para chamar de lar. Bom contador, pai ausente, e sempre presente estava um copo ou uma garrafa de bebida alcoólica nas mãos. A sua íntima - e personalíssima - tristeza era represada por garrafas de vinho. A alegria momentânea de degustar.

As escolhas determinaram Pedro um morador de rua, tal como tantos outros invisíveis nos grandes centros urbanos do país, o sujeito perdeu tudo o que tinha construído em vida, em que a velhice ao menos construiu a barreira de salvaguarda chamada esquecimento, amortecimento biológico que faz o homem ainda sobreviver ao suportar.

O relógio do centro marcava que já se passava das 4h00 da manhã e Pedro continuava a aproveitar a claridade da luz da praça, sentado debaixo de uma árvore, encostado no tronco e bebendo sem parar.

Tira um bilhete do bolso, fita-o, mas não consegue ler porque está muito alcoolizado para traduzir o que está escrito. Alheio às suas ações, solta o bilhete ao léu. No entanto, lembra-se de outra situação engraçada, ao soltar uma gargalhada, mas, por um momento, cai na real ao não saber distinguir se aquilo que lembrou era algo real ou algum delírio criado pela sua imaginação.

O bilhete amarelado e amassado, castigado pelo tempo, voa e fixa-se a outro tronco de árvore pela força do vento. A mensagem tem os seguintes dizeres: “Pai, a sua filha te ama. Se tiver algum problema, me liga. Com amor, Carol”.   

O tempo passa, o relógio marca 05h:30min, o nevoeiro traz o frio intenso e turva a visão. Era a noite mais fria do ano, Pedro estava descalço e vestia somente uma calça fina e um casaquinho, ao que se aquecia somente pela bebida. E... Bebeu demais.   


***

Claudia


A jovem Claudia, que acabara de completar 30 anos de idade, gozava de plena saúde e tinha a liberdade de quem não obtinha nada para empenhar. A moça sempre levava consigo um espelhinho rachado, empoeirado, mas que mostrava a beleza natural de mulher vaidosa, que, se houvesse oportunidade, gostaria de ter mais condições para se embelezar.

Porém, a beleza natural era ofuscada pela condição social. Sempre sem maquiagem, com os cabelos duros por causa de sujeira, além de uma indumentária que deixava a desejar, a moça era invisível aos olhos de todos porque o próprio padrão estético estava aquém do que a sociedade obriga a realizar.

Uma das colegas, pegando no seu cabelo e analisando bem profundamente os seus atributos, disse a Claudia que se ela se prostituísse como as demais, num instantinho a moça sairia do cortiço e também da rua. Para meretriz, no aspecto físico, havia potencial. O problema é que pelo aspecto moral Claudia era uma mulher de fibra, em que escolheu coletar lixo inorgânico na rua a perder o orgulho de ser uma mulher correta.

Enquanto isso, aos arredores da região, os primos abastados da família Paranhos estavam andando de carro à noite pela cidade, usando o tempo de vadiagem para fazer o que querem, já que a dupla possui a liberdade que só a riqueza pode aportar.

Os Paranhos achavam que tudo podiam, pois o dinheiro a tudo podia comprar. E com esse pensamento, passaram perto de uma moça que mora em cortiço ou talvez ao relento e tiveram a grande ideia surreal: transar com uma mulher de rua. A moça a ser importunada era a Claudia, que andava muito distraída ao devanear por aí.

Eles de carro; ela, a pé. Os Paranhos começaram a mexer com a moça, ao fazer abuso por meio da comunicação verbal. Claudia apressa os passos porque não quer saber dos dois moços que a abordaram de forma hostil. Os Paranhos, então, estacionam o carro e começam a persegui-la a pé. Claudia olha para trás e consegue ver a placa do automóvel. Ela corre o mais rápido possível para fugir do perigo, até entrar em uma rua sem saída.

Sem ter como fugir, a moça começa a clamar por socorro e tenta se desvencilhar dos dois primos, que nesse momento já estão a segurando de forma mais abrupta até chegar o ponto de um dos dois jogá-la violentamente em direção dos sacos pretos de lixo que estão empilhados no chão.

Enquanto um a segura, o outro pratica o ato. Os dois fazem a consumação. Claudia é violentada ao pudor. Os primos, com ar de satisfação, vão embora. Os Paranhos conseguiram realizar o que pra eles não passa de mais um passatempo de diversão.

Claudia, aos prantos, chorando de soluçar, se levanta do chão - não notou que sua roupa ficou suja por causa do chorume do lixo -, e vai para uma delegacia que fica muito próxima daquela região.

Chegando à delegacia, com o chorume causando odor que fazia todos os presentes do local colocar a mão no nariz por causa do fedor, o cheiro, além da sua condição social, faz todo mundo olhar também de forma hostil a Claudia, que queria somente justiça pela situação que estava passando.

Maltrapilha, suja e fedorenta, além do choro dar impressão de poder estar alcoolizada, ao soluçar sem parar a Claudia fala ao delegado que fora estuprada, em que os malfeitores tinham certas características e estavam em um carro de luxo com a placa identificada.

O detetive Alencar tabula todas as informações e desacredita Claudia, pois os primos Paranhos não poderiam ter feito aquilo, já que os abastados tinham uma reputação a zelar. Além disso, o delegado a insulta por estar fétida, além de maltrapilha, enxotando-a por fazer o Estado perder tempo precioso com nulidades.

Claudia sai da delegacia sem acreditar. Como pode haver tanta injustiça nesse mundo? Não aguenta o peso nas costas, a falta de dinheiro, a falta de humanidade, o desrespeito que só quem é da rua sofre a todo tempo e poderia entender.

A moça ficou reclusa por dois dias, abatida e totalmente depressiva. No terceiro dia, à noite, Claudia sai do seu barraco da periferia, percorre em direção à ponte da cidade, trepa no parapeito, pensa por um instante e, convicta, resolve se jogar. A frágil mulher amargurada some diante da correnteza do rio.

Cinco dias se passam e um pescador, pela manhã, avista alguma coisa enroscada perto de uma pedra. Ao se aproximar, descobre o corpo de uma jovem, por volta dos 30 anos, boiando na água. O pescador, então faz o que é correto a fazer: tira o corpo do rio, encosta-o na margem, e liga para a polícia.

Quem assume a ocorrência é o delegado Alencar. Ao chegar ao local, o homem da segurança pública reconhece como sendo a miserável da Claudia, que há uma semana fazia reclamação na delegacia, sob a sua responsabilidade.

O banho que Claudia tomou no rio, ao ficar alguns dias de molho na natureza, parece que a revigorou, tornando-a mais bonita e jovial como nunca, uma defunta lindíssima que se apresentou aos olhos das testemunhas que estavam no local.

Sem elencar os Paranhos com a jovem, o delegado Alencar, acariciando a pele do rosto e ao mexer nas mexas de cabelo da moça, suspira e comenta com o pescador: é uma moça muito bonita, mas vivia sempre desleixada, ao menos se ela se cuidasse....

Pois bem, ninguém a cuidou.

   


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Sumidouro dos Desvalidos de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em https://efeitoorloff.blogspot.com.

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