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Resenha: 17 Contradições e o Fim do Capitalismo - David Harvey

Por: Júlio César Anjos


Contradição 1 – Valor de uso e valor de troca

É a questão do imóvel. Imóvel é feito para morar [valor de uso] e não para negociar [valor de troca]. 


Contradição 2 – O valor social do trabalho e sua representação pelo dinheiro

Dinheiro é mecanismo de troca. É a régua de mensuração de todas as mercadorias.

O que gera valor é a criação social que só o trabalho pode ofertar.


Contradição 3 – Propriedade privada e Estado capitalista

Apropriação é diferente de propriedade privada.

Apropriação – relação exclusiva [de exclusão] entre o usuário e o que está sendo usado. Exemplo: Aluguel de um apartamento.

Propriedade privada – direito de posse exclusivo de uma coisa ou um processo, que seja usado ativamente, ou não. Exemplo: Dono de um imóvel.

Estado capitalista – o individuo tem direito à propriedade privada. Mas o Estado se arroga de direito, dependendo da situação extraordinária, até mesmo de tomar esse imóvel coercitivamente – dependendo da regra do jogo do Estado capitalista.

O Estado capitalista tem o monopólio de tudo; portanto, neste sentido, não há propriedade privada.

Para o marxismo, a propriedade privada é tão sagrada que todo mundo deveria ter onde morar, além de ser um bem inalienável, ou seja, ninguém poderia vender nem alugar. Mas isso é utopia.

Você é dono da propriedade desde que não infrinja nenhuma regra – regras essas que às vezes são feitas para o Estado pilhar a propriedade privada. Exemplo: minha casa, minha vida. Embora um programa social, se o cidadão não pagar pelo bem terá o seu imóvel espoliado e morará na rua. Não existe almoço grátis no Estado capitalista.

O Estado domina outros tipos de propriedade privada. Se uma pessoa é dona da sua terra, ela pode fazer o que quiser com ela, certo? Errado. O Estado criará leis para dominar a propriedade privada perante todos os demais. Exemplo: uso de solo [há lugares que se pode abrir negócio e há lugares que não].

A propriedade privada só pode ser adquirida com dinheiro. O Estado controla o dinheiro. Logo, você não é dono da propriedade privada. Exemplo: hipoteca.


Contradição 4 – Apropriação privada e riqueza comum

Apropriação privada = roubo, pilhagem, fraude e traição. Exemplo: ouro e prata foram roubados das Américas para satisfazer a Europa.

Os poderosos roubam e pilham civilizações inteiras, delimitam as suas terras em frações e depois oferecem essa terra aos cidadãos que não possuem lar como produto, ao dizer que ao adquirir aquilo teria “propriedade privada”. Esse é a lógica capitalista, todo mundo vivendo em casa apertada.

Riqueza comum = terra. Deus não fez Adão e Eva ao dar-lhes um registro de imóvel do mundo todo para fazer cartório de títulos, para vender em frações essas terras, para a nova humanidade que estaria por vir.

Essa pilhagem sem lógica de terra é desarranjo de poder; que só aumenta com o capital.


Contradição 5 – Capital e trabalho

Capital x trabalho

O Capitalismo expulsa pessoas das terras e depois vendem essas terras como propriedade.

Quando o trabalhador consegue obter poder contra o capital, o capital chantageia com demissões, desinvestimentos, para criar forçosamente desemprego e colocar o trabalhador na berlinda.

Os trabalhadores ganham salários. Mas perdem esse salário com custos de vida como: contratar serviços de saúde, tarifas de bancos, saneamento básico e por aí vai.


Contradição 6 – Capital como processo ou como coisa?

O capital pode ser um processo porque faz parte da condição humana. Mas também é coisa porque é artificial. Exemplo: rentismo.

Capital fixo [máquina e equipamento] com propósito de produção artesanal = processo. Como produção em escala de mais-valia é coisa.

Capital circulante [dinheiro] como somente troca de mercadorias é processo. Mas moeda como especulação é coisa.


Contradição 7 – A unidade contraditória entre produção e realização

O capital produz riqueza para os capitalistas e realiza a desigualdade para os trabalhistas.

O aumento de natalidade de família pobre é uma produção social de reserva industrial para o capitalista. Com a oferta de mão de obra aumentada, esse descompasso gera mais pobreza.

Mais valor = produção

A ideia é saber se a produção gerará realização. Ou seja, se o que os trabalhadores produzem viram poder de compra compatível com a sua produção.

O capital precariza o trabalho porque, como o trabalhador tem que trabalhar pra sobreviver, isso faz com que a produção seja alta e o custo baixo para contratar o trabalhador – poder de barganha –, ao passo que o trabalhador sofre com arrocho.

Outra forma de acabar com o custo-benefício produção/realização do trabalhador se dão mediante alugueis e outros custos de sobrevida [de sobrevivência social].


Contradição 8 – Tecnologia, trabalho e descartabilidade humana

A tecnologia gerará monopólios e patentes.

Guerras e ameaças de guerra estão ligadas à tecnologia [quem faz investimento em tecnologia uma hora ou outra tem que testar o investimento].

Os robôs não ficam doentes, não pedem aumento, não são inconstantes entre produtivo e improdutivo. O homem está sendo descartado pelo robô.

Após a descartabilidade humana, o Estado agora dá esmola como bolsas para que o povo necessitado sobreviva temporariamente.

Mas esse humano descartado também pode ameaçar a reprodução do próprio capital. Se na parte de redução de custo a robótica é boa [curva da oferta], na parte do consumo é problema [curva da demanda].

É por isso que as teorias de redução populacional estão crescendo. Não há necessidade de tanta mão-de-obra para gerar elevado capital – a robótica se encarrega disso.


Contradição 9 – Divisão do trabalho

Há divisão técnica e social do trabalho.

A divisão técnica do trabalho é aquela que qualquer um pode executar – Exemplo: limpar chão.

A divisão social do trabalho é aquela que tem aprimoramento de especialista – Exemplo: exercício da medicina ou desenvolvimento de software.

O trabalho já foi dividido por gênero no passado. Os mais “fáceis” iam para as mulheres porque o preconceito dizia que mulher era incapaz.

A divisão técnica é algo mais pontual geograficamente. Já a divisão social pode ser global.

Trabalhos sujos e ofertados a imigrantes são mal remunerados.

Já trabalhos de tecnologia na Ásia possuem status.

O trabalho como produto de concorrência.

Antes dessa divisão havia o sistema de guildas e o monopólio do artesão.

Mas a guilda criava o status. Exemplo: maçons.

A riqueza das nações de Adam Smith, com a questão de divisão do trabalho, ajudou a tornar o operário um trabalhador mal qualificado – faz parte do todo, mas não sabe de nada.

Com isso, o trabalhador, por ser descartável por só ter conhecimento raso e especifico, fez o trabalhador deixar de ser orgulhoso [ter orgulho de ser trabalhador].

O capital gerou a desqualificação do trabalhador.

O trabalho especializado é crucial [dividido em uma capacidade em uma coisa só].

A vantagem comparativa de David Ricardo também criou divisão de trabalho, mas em questão geográfica global: um país não pode cultivar uma cultura, em acordo comercial, para cultivar outra cultura para fazer a troca. Vantagem comparativa é desigualdade global.

Mas nem tudo é ruim. Se num passado distante perder a safra significaria fome, hoje há a compensação ao buscar negociação em outras regiões. Além, é claro, de a tecnologia tornar o desastre da perda de safra bem menor do que num passado não muito distante.

Com o aumento da desigualdade social global, além da desigual divisão de trabalho social em locais específicos, tal fenômeno está fazendo que regiões mais primitivas tornem os trabalhadores mais alienáveis pela dependência.


Contradição 10 – Monopólio e competição: centralização e descentralização

Poder excessivo de mídia social impacta na soberania entre países, além de criar alienação de povos inteiros diante aglomerações globais.

A crise de 2008, ao imprimir dinheiro à revelia para salvar empresa falida, centralizou ainda mais o capital para meia-dúzia de megaempresários.

Joseph Stiglitz já profetizava: há duas maneiras de enriquecer: 1) criando riqueza; 2) tirando riqueza dos outros.

Empresas monopolistas estavam por trás das ditaduras militares da América do Sul [isso a gente já sabe por vivência].

O Estado cria a centralização [monopólio] e a descentralização [concorrência].

Duas padarias a uma distância de trezentos metros uma da outra é algo que pode sugerir uma intensa concorrência, mas, se existe um rio caudaloso entre elas, cada um dos padeiros terá o poder de monopólio de um lado do rio. O poder de monopólio acaba se o rei constrói uma ponte sobre o rio, mas é restabelecido se um senhor local impõe um pedágio abusivo à travessia da ponte, ou se o rio se torna fronteira politica e passa a ser cobrado um imposto alto para o comércio de pão entre uma margem e outra. [...] foi assim que surgiram as taxas alfandegárias.

A medicina é uma área muito monopolista. Mas o turismo médico quebra o monopólio entre nações. Todavia, o que preocupa a medicina é o avanço da tecnologia de inteligência artificial.

A mão pesada estatal faz tornar concreta e visível a “mão invisível” de Adam Smith.

A China compreendeu a tese de Smith de que um Estado primeiro tem que vir centralizador e acumulador de riqueza para ofertar, quando rico, a descentralização de liberdade de mercado. Primeiro fica rico por centralização; depois distribui renda.


Contradição 11 – Desenvolvimentos geográficos desiguais e produção de espaço.

O que destruiu Detroit não foi só a crise, mas as mudanças de outras montadoras para Tennessee e Alabama que tinham trabalhadores que aceitavam trabalhar por salários menores. A concorrência geográfica produz precarização.

Investimentos grandiosos sempre terão como foco as cidades que possuem maiores populações e infraestruturas, em que poderão entregar a produção e escoar a produtividade.

O capitalista move o seu capital [máquinas e equipamentos] quando possível. Exemplo: uma empresa de confecção pode levar todo o seu maquinário para qualquer lugar do mundo. O mesmo não acontece com uma mina ou uma siderúrgica.

O capitalista é parasitário, usa o espaço geográfico de uma região até o seu esgotamento e depois disso sai sem dar satisfação, nem ligando para a questão social. Exemplo: Detroit.

Esse uso até o esgotamento, seja físico ou espacial, como processo evolutivo é chamado de “destruição criativa” sobre a terra [entenda aqui não só terra agricultável, mas a terra de cidades também].

Esse regime predatório atrai migrante [que quando o mercado está aquecido e atraído, ninguém liga para aumento populacional por migração]. A empresa sai de tal região por esgotamento e deixa os migrantes a ver navios. E aí a culpa recai, quando há desigualdade que gera violência em dada região, nos migrantes.

Vendo essa modulação constante, Adam Smith sugeriu que os Estados liberassem de uma vez as forças de capital e livre mercado. Ou seja, se não pode com o “inimigo”, então que se uma.

O mercado desregulado traz caos. Para conter o caos, o Estado se arroga de criar burocracias. Essas burocracias atravessam a linha imaginária da fronteira, obrigando a criar blocos econômicos [BRICS] e geográficos [união europeia]. Isso cria produção de espaço físico ou espacial.

O Estado junto com o mercado financeiro faz o “capitalismo abutre” de um lado e estimula práticas canibais [concorrências] de outra. É nesse ponto em que o capitalismo artificial, quando gera crise, contamina o mundo real, acabando com o capital social da região afetada pela crise.

Mas o capitalismo sempre foge da crise porque, em qualquer momento de problema econômico, o capitalismo chantageia a sociedade e precariza o trabalho para não ter prejuízo – ou reduzir tais prejuízos.

O mundo anticapitalista deve entender que o capitalismo está sempre mutável, criando até mesmo artificialidades [mercado financeiro] para se proteger porque o Estado dá salvaguarda.

A solução para sair deste sistema predatório se dá pelo mundo tornar-se anticapitalista e fazer só organizações econômicas regionais.


Contradição 12 – Disparidade de renda e riqueza

No mundo pós-muro de Berlim, os países, até mesmo aos socialistas, tiveram uma ascensão gigantesca de novos bilionários como a própria Rússia, por exemplo.

A concentração de riqueza faz a desigualdade social.

Como nem todos possuem acesso ao bolo da grana, então essa disparidade gera não só desigualdade como disparidade na renda.

Como o capitalismo cria uma distribuição desigual de renda, com o problema não resolvido até mesmo de desemprego, tal desajuste vira algo benéfico para o capitalismo porque gera um exército industrial de reserva.

O desempregado fica na mão do capitalista porque não tem onde correr.

Além disso, o capitalismo também pode contar com a reserva latente, que é o trabalhador do campo que pode ser adaptado para virar assalariado. Então a reserva é grande para o capitalista manter o poderio sobre o trabalhador.

Os desempregados ganham a vida como podem nas favelas. Essa sobrevivência estabelece um custo de vida mais baixo do que o do capitalismo formal. E também vira parâmetro para o capitalista determinar a desutilidade marginal [o mínimo que o trabalhador aceita para trabalhar].

Para corrigir tal problema, o Estado criou o workfare, uma espécie de assistencialismo alternativo ao walfare estate. Para conseguir a assistência, o individuo deve cumprir certos requisitos como possuir experiência profissional e ter realizado trabalhos voluntários para entrar no beneficio.

O capitalismo, historicamente, se libertou dos proprietários das terras, que conseguiam renda de maneira primitiva, mas o capitalismo do século XXI agora avança em direção ao rentismo de plutocracia, magnatas de mídia, financista entre outros, que sugam o capital industrial produtivo.

Agora, se todo mundo viver de renda, ninguém produzirá nada de fato, portanto impossível. O resultado deste desarranjo é crise.

A desigualdade, portanto, é essencial para o capitalismo. E reduzir a desigualdade afeta a reprodução do capital. Ou seja, o capitalista quer a desigualdade social para manter-se no poder econômico.


Contradição 13 – Reprodução Social

Antigamente a reprodução social se dava por uma vivência mais primitiva, com trabalhos braçais e ganhos para a sobrevivência. A partir do momento que há a evolução e bem-estar social, a reprodução social muda para outros objetivos como trabalho em campo de conhecimento e nas áreas do saber.

Mas como essa nova reprodução, baseada no consumo, não é sustentável, a dinâmica provoca o endividamento – para o individuo se adequar ao padrão de reprodução social vigente.

Ou seja, a artificialidade que vai desde marcas e patentes até rentismo de especulação financeira faz com que a reprodução social contemporânea seja inalcançável, frustrando o bem-estar de qualidade de vida desta nova era.

A reprodução social ainda é determinante pelas mulheres.

 Se no passado feudal a mulher tinha filho como um investimento, que ajudaria com a renda na casa para trabalhar com a família [mais uma mão para ajudar no sistema feudal], a liberdade da era atual faz o filho ser somente custo, pois a criança em fase adolescente não pode trabalhar, e se trabalhar os seus ganhos vão para si. Enquanto que o filho na fase adulta tende a deixar os pais.

A reprodução social é a questão da previdência. Se no passado o idoso ficava a cargo da família, hoje o aposentado fica a cargo do Estado, onerando ainda mais o custo social, criando crises por causa de tal evolução.

Mas há avanços também na reprodução social. O exemplo são as “soccer moms” que se ajudam para não onerar tanto o gasto familiar no fim do mês.

Se nos tempos primitivos o Estado não atacava tanto a organização familiar, hoje o Estado quer abarcar tudo. Mas esse mesmo Estado não tem condição de pagar por todos os serviços, mesmo tributando pesado os seus cidadãos, porque o Estado é incompetente e criador de crise.

E veja só a loucura: a reprodução social primitiva foi retirada da sociedade, ao ser abarcado pelo Estado e pelo capital, ao passo que o Estado falido não consegue entregar este novo bem-estar social inserido pelo... Capitalismo!


Se o ocidente critica a escravidão das crianças de Índia e Paquistão trabalharem para fazer bolas para os ocidentais, esses mesmos ocidentais compram essa bola para o seu filho chutar. Hipócritas.

Se a reprodução social no começo da revolução industrial era dinamizada pelo “homo faber”, hoje o ser humano com o seu esgotamento de modelo do capital virou o “homo prodigus”, aquele que desperdiça.

Então a reprodução social de hoje se dá no esgotamento sem conscientização de muitos processos de produção, criando fadiga no individuo laboral e no desgaste da natureza em ter que prover essa dinâmica surreal.

A reprodução social, também, muito bem aceita pelo tal “sonho americano”, em que tinha como justificativa que era algo natural e normal à ascensão social, tal condição está dando sinais de término.  A estagnação social da classe média é regra nessas épocas em que a desigualdade social entre rico e pobre aumenta, mas que mantem uma classe media em status quo.

Alguns antropólogos sugerem até mesmo a volta da vida selvagem indígena para contrapor essa nova era de reprodução social contemporânea, pois entendem que este padrão social está matando como um veneno que envenena devagar a sociedade ocidental. Voltar a ser índio não é o ideal, mas pode servir como contraponto teórico.

Se na época do segundo império da França tinha como lema: “conquiste as mulheres”, hoje o capitalismo tem como slogan: “conquiste as crianças”, reduzindo a escalada de moralidade social do capital perante o mundo.

Quanto à reforma agrária, para destinar terra aos sem terras, tal atitude, mesmo que bem implantada, será revogada porque a tendência do capitalismo é a espoliação. Ou seja, dá terra hoje; e amanha, porque esse desafortunado perderá a terra por não conseguir pagar imposto, ficará novamente sem terra. Por isso que terra só tem valor de uso.


Contradição 14 – Liberdade e Dominação

Marx e Ayn Rand eram parecidos na questão da busca pela liberdade. A única diferença é que Marx queria alcançar essa liberdade por meio de associações [coletivos] enquanto que Ayn Rand queria por meio do egoísmo individual.

O capitalismo tem como pilar a meritocracia. Mas, como se sabe, nem todos saem à disputa com as mesmas condições. Esse descompasso faz o capitalista que já está no topo estar sempre no topo, o que gera a dominação do sistema perante a sociedade devido à impossibilidade da mutação social.

Se por um lado o capitalismo filosofa sobre a liberdade; por outro, ela impede pela dominação que essa liberdade se concretize. É o grilhão da dominação por manter-se no poder.

O EUA, por exemplo, berço da liberdade, controla tudo para que os cidadãos sejam livres, pois este controle total é algo imperativo para a luta contra o terror. Talvez essa guerra contra o terror seja só um espantalho para que a dominação seja feita sem que o cidadão se dê conta disso.

É no estilo George Orwell que o capitalismo fala em liberdade para manter domínio: guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força.

Na França, o terror da revolução serviu para pelo menos tentar implantar a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Hoje, a França morre por ser um governo burocratizado e esclerosado, apoiado num aparelho de repressão policial.

O capitalismo faz a liberdade e a dominação, embora paradoxal, caminharem juntas. No discurso e na aparência o capitalismo parece libertar os povos, mas na prática os megaempresários dominam tudo, cada vez mais, por causa da arbitrariedade estatal em favor do grande capital.

O laissez-faire das ideias do Estado liberal do século XVIII é utopia porque a dominação da fusão Estado e Capital impede que isso aconteça.

O partido republicano no EUA pode muito bem cortar auxilio-alimentação para a população, no mesmo momento em que dá subsídios para o agronegócio. Para acabar com o auxilio-alimentação, a defesa se dá que o cidadão deve prover o seu próprio sustento. Mas para o grande agricultor, o republicano diz que o agricultor pode não ter condição de prover sustento – nem para si, nem para todos.

A liberdade capitalista cria uma escravidão social. O individuo fica dependente do patrão mais próximo do seu raio social. Os trabalhadores são livres, ironicamente como argumentou Marx, para vender a força de trabalho para a própria sobrevivência.

O capitalismo só sobrevive também se tiver a ideia de defesa de propriedade privada. Alegando propriedade privada, bancos tomam casas dos mutuários. E o mesmo acontece ao inverso, caso esse mesmo banco tenha problema e tenha que ser socorrido porque é grande demais pra falir.

Para Amartya Sem, liberdade é “oportunidade substantiva” [acesso a bens materiais e serviços]. Pois, sem tais acessos, por mais que a pessoa seja livre, ela estará privada de tudo.

Mas o homem trocaria a oportunidade substantiva por uma alienação do seu próprio destino. Ou seja, com medo de não ter acessos de necessidade básica, o homem aceita ser escravo do sistema capitalista.

Os ricos se sentem culpados e começam a fazer filantropia. Mas logo se dão conta que filantropia é lavagem de consciência, o que permite que os ricos tentem dormir melhor à noite. Esse peso na consciência, por si só, mostra que alguma coisa está errada.


Contradição 15 – Crescimento exponencial infinito

O crescimento exponencial infinito se dá mais da artificialidade de acúmulos de dividas, pelo desarranjo Estado-Capital, que permite que haja crédito em excesso, muito mais até o que o capitalismo anárquico poderia auferir.

No capitalismo anárquico e primitivo, qualquer erro de investimento vira dívida, com fechamento do capital, além de outras complicações [matar porque não pagou]. Então, por causa do amparo do Estado ao fazer leis, o capitalismo com o desarranjo da dívida torna o crescimento exponencial possível [amparado pela divida].

O crescimento exponencial é tão absurdo que dá para criticá-lo por anedota: “certa vez, um rei indiano quis recompensar o inventor do jogo de xadrez. O inventor pediu o equivalente a um grão de arroz no primeiro quadrado do tabuleiro e que a quantia dobrasse de quadrado em quadrado até cobrir todo o tabuleiro. O rei concordou de imediato, porque o preço parecia baixo. O problema é que, ao chegar ao vigésimo primeiro quadrado, eram necessários mais de um milhão de grãos e, depois do quadragésimo primeiro quadrado [mais de trilhão de grãos], não havia mais arroz no mundo para dar conta dos quadrados restantes”.

Outro fator que faz parecer que o crescimento exponencial pareça algo possível se dá pelo fato do crescimento populacional avançado. Mas esse aumento tem limite de expandir; embora a expansão de dinheiro, não.

A forma mais fácil do capital crescer sem limites está na inflação [impressão de dinheiro sem lastro à revelia]. E não precisa dizer que hiperinflação no final deixa o rico mais rico e o pobre mais pobre [é questão de empirismo].

A privatização de serviços estatais como saneamento básico, água, luz, habitação, entre outros, deu folego para o capitalismo expandir e, com isso, falsear a ideia de que o crescimento exponencial faz sentido. Mas e quando não houver nada para privatizar, como o capitalismo encontrará outra saída para acertar as contas à sociedade?

Como há algumas privatizações que não deram certo, a sociedade pressiona para que haja a reversão dos serviços estatais ofertados ao Estado, voltando a ser algo estatal.

O capital, para manter-se sempre em expansão, cria produtos descartáveis com obsolescência programada para manter o ritmo de consumo elevado.

Para conseguir o objetivo de manter a aceleração de circulação de mercadoria e serviços, o capital investe em propaganda para o cidadão querer algo que não precisa ou que nem mesmo é útil, mas que seja comprado sem parar, só por causa do fetiche de possuir algo.

Nesta loucura de expansão, é notório que mais pessoas entram também para fazer compra, mas também venda, de produtos ou serviços. Neste quadro, cria-se o fenômeno prossumidor [aquele que é consumidor e comprador ao mesmo tempo].

Com a ameaça do prossumidor, o capital faz mais ainda fusão com o Estado e fecha ainda mais o mercado, por causa da ameaça constante de novos entrantes.

Com todo esse fetichismo em curso, o cidadão comporta-se de forma espetacularizada, o que Guy Debord já tinha previsto no seu livro sociedade do espetáculo.

O aumento de dinheiro em circulação cria bolhas. Quem cria a bolha entra em crise quando ela estoura, mas é salvo pelo Estado. Deste modo, ao ser salva, repete a dose, criando nova bolha. E o ciclo de bolhas vão surgindo até que o crescimento exponencial chega a um limite. Quando esse limite não chega, quem paga a conta é o pobre com hiperinflação.

Deste modo, o que cresce vertiginosamente é a classe de rentista parasitário que acha que criará riqueza só por colocar dinheiro em um lugar [o milagroso fundo] e esperar que isso renda os lucros.


Contradição 16 – A relação do capital com a natureza.

Ao contrário do que se imaginava, o capitalismo salvou a natureza ao invés de destruí-la.

Malthus acreditava que o crescimento populacional faria com que os recursos escassos da natureza fossem extintos, criando colapso no mundo. O fato é que ocorreu o contrário, o capitalismo, ao fazer do alimento um negócio, somado com investimento em tecnologia e inovação, fez com que a natureza fosse otimizada para atender o homem, ao ainda conseguir preservar a natureza deste colapso imaginado anteriormente por Malthus.

Mas mesmo com esse cenário, o fato é que a natureza está dependente do capitalismo, ao invés de ser preservada pelo homem por conscientização. Ou seja, se o capitalismo deixa de operar em uma região, muito provavelmente a natureza poderá sentir os efeitos porque não dá lucro.

A natureza virou mais um instrumento para o capitalista fazer lucro. Mas como o capitalismo não é perfeito, ele também provoca desastre ambiental. Mas para conter este problema o capitalismo aceita ser regrado, ao criar a regra de carbono.

Como tudo é lucro, até mesmo uma planta em pé ou um animal vivo, fazendo do homem um ser somente expectador de tudo, até mesmo da natureza, tal falta de concretude torna o ser humano perdido, o que faz esse ser ter problemas psicológicos até o ponto de ter que usar Prozac para sobreviver. A alma fica esvaziada. O homem torna-se inútil. A isso é chamado de Geração Prozac.

Com essa dependência em que só se salva o que dá lucro, o ser humano fica dependente de tudo: desde água potável até alimento agricultável.

Essa ilusão de que o capitalismo é bom porque resolve tudo cria aquilo que é chamado de greenwashing – em que se disfarça um projeto com fins lucrativos como um projeto para melhorar o bem-estar das pessoas.

Alguns até acreditam que o Al Gore - para conter a emissão de carbono -, que hoje virou grande fonte de ganho com especulação, foi feito por querer para chegar neste resultado; e não salvar o planeta, como em tese deveria ser.

O capital lucra na defesa; mas também lucra na catástrofe ambiental.

Proteger a natureza também pode ser fachada para grandes donos de terras terem o monopólio de riquezas naturais, que vão desde uma floresta intocada até um rio correndo na propriedade privada, sendo impossível acesso das demais pessoas.

Com a dinâmica de vida sendo construído na base de frequência de rádio de equipamentos de mídia, com agrotóxicos nos alimentos, além de uma rotina exaustiva, o capitalismo aumenta o índice de câncer na sociedade.

A África, como era uma região menos desenvolvida, por isso com menos propensão de esforço capitalista, chegou a ser cogitada como o depósito de lixo da Europa porque ela já era sub-poluída.

O Dust Bowl [10 anos de seca], por causa do uso irregular do solo para plantação, fez com que o EUA tivesse que criar leis mais rígidas, indo contra a propriedade privada, para conter este mal.

O capitalismo causa poluições sonoras, visuais e até poluição do ar em escala nunca antes vista, como, por exemplo, as provocadas pelas siderúrgicas no EUA e na China.

Até a Margaret Thatcher – formada em química -, no Protocolo de Montreal, aderiu ao movimento ambientalista por saber da nocividade do capitalismo sob a natureza. Hoje não há Margaret Thatcher para salvar.

Mas o capitalismo trás eficiência. Tanto é que a escala de produção de alimentos atende hoje uma escala de crescimento populacional sem problemas.


Contradição 17 – A revolta da natureza humana: Alienação Universal

Em o enigma do capital, “eu conclui”: O capitalismo nunca vai cair por si próprio. Terá de ser empurrado. A Acumulação do capital nunca vai cessar. Terá de ser interrompida. A classe capitalista nunca vai entregar voluntariamente seu poder. Terá de ser despossuída.

Alienação tem vários significados: no termo jurídico, alienação significa transferir a propriedade para outra pessoa; como relação social, aliena-se lealdade e confiança; como termo psicológico, alienação significa se isolar do mundo.

O capitalismo, conforme avançou durante o tempo, expurgou o centrismo politico-ideológico, que funcionava como escudo de defesa para o capital contra ideologias mais extremistas. Hoje, o capital defende-se de “instituições” do Estado, sem levar prejuízo social algum.

O ser humano será cada vez mais alienado porque quanto mais o dinheiro é produzido, mais o ser humano consome irracionalmente.

O individuo, então, troca a sua liberdade pela luta interminável para participar da disputa mercadológica, em que cada qual espera vencer. E a partir do momento que se aceita jogar o jogo, tal cidadão já está alienado perante o capital, portanto, já é escravo do sistema.

O capitalismo consegue humanizar tudo, até mesmo robôs em películas cinematográficas, como, por exemplo, Wall-E e Sonmi-451 [Cloud Atlas]. Enquanto isso se desumaniza o homem sob a ideia de mérito, que é verniz para a sociedade aceitar a desigualdade social como novo normal.

  Assim como a eficiência do trabalho torna o serviço desprendido mais fácil e até por reduzir esforço e horas dedicação, na parte oposta cria-se o estado de crise existencial, porque o trabalhador acha que não está trabalhando e isso cria um desgaste mental de inutilidade.

O capitalismo rompeu a barreira de necessidades e desejos. Tudo que é supérfluo vira algo indispensável para o bem-estar humano, do individuo consumidor daquele momento.

Isso cria uma sociedade abastada, mas parasitária, que quer manter esse sistema econômico de criar dinheiro do nada para satisfazer os interesses de tal classe.

A classe parasitária já foi analisada no livro Teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen. No entanto, é sabido que se tal classe não existisse espontaneamente, ela seria criada artificialmente.

Como a rotina do consumo e da sociedade do espetáculo pressiona atitudes e ações, embora a tecnologia sirva para reduzir até mesmo a carga horária, por causa de problemas de consumo, quanto mais a tecnologia avança, paradoxalmente, mais o homem trabalha para manter o padrão de vida artificial.

Esse fenômeno cria os bens compensatórios, que são bens inúteis que são desejados justamente por serem inúteis por causa da sua futilidade – a pessoa tem porque pode comprar a bugiganga. Ostentação pela quantidade.

Com essa pressão social, os estratos sociais não remunerados devem ser assalariados para rodar essa roda de consumo. Mas esse salário deve ser ajustado para o mínimo, para que esse ser busque a ilusão de perspectiva de obter mais salário para buscar mais inutilidade de mercado.

 É como se a pessoa não fosse usuária de droga, os amigos pressionassem essa pessoas a usar droga até viciar. Aí a pessoa quer mais droga, não possui dinheiro para sustentar o vício, caindo em degradação total. Essa é a relação: consumo x poder de compra.

O capitalismo faz mais ou menos isso quando tem uma infinita gama de mercadorias, mas o salário não dá pra nada.

As pessoas com essa lógica social têm cada vez menos tempo para lazer porque tem que trabalhar para comprar aquilo que não gosta. Isso é análogo ao filme: “Clube da Luta”.

Se no Estado primitivo os cidadãos viviam com a roupa do dia-dia-dia e tinham só poucas peças como a roupa para ir pra missa; hoje, com o individuo tendo que atuar em diversos papeis sociais, usa-se muita indumentária, muito perfume, muito penduricalho que faz a pessoa ser escrava destes utensílios, bem como dos eletrodomésticos que deveriam facilitar a vida [porque o individuo tem que lavar uma grande quantidade de roupa a cada final de semana]. A mesma coisa acontece com comida [mais comida, mais geladeira, batedeira, liquidificador, etc.]. Ou seja, vira escravo dos eletrodomésticos porque tem que desempenhar um papel social.

A tecnologia de mídias sociais pode servir em dois casos: 1) Para uso de uma juventude educada e excluída para fazer ativismo político; 2) para perder tempo simplesmente com futilidade.

E-mails, trocas de mensagem, distrações de vídeos geram a improdutividade dentro da produtividade capitalista, ao ocupar o tempo somente entre produzir para o capitalismo, com os momentos de vacância sendo desperdiçados com distrações que são usados para o individuo ser escravo do capitalismo. O homem alienado não se aprofunda e tende a virar o homem-massa.

O Estado, ao ser um mero instrumento do capital, está excedendo seus poderes e por isso deve ser combatido.

O Estado absolutista e totalitário dos séculos XVI e XVII teve que se adaptar ao novo padrão burguês, mas isso gerou uma ideologia burguesa de laissez-faire que é impossível de realizar. O liberal até fala aquilo que a classe média quer ouvir, mas o discurso é impossível de se realizar.

Conclusão – Perspectivas de um futuro feliz, mas controverso: a promessa do humanismo revolucionário

O que fará oposição ao capitalismo será o humanismo.

Mas não o humanismo de Nietzsche do super-homem, nem o renascentista de Erasmo, o humanismo será a altruísta, que não se motiva por bem material, porque só quer saber do bem-estar de todos. É questão moral.

Assim como muitos humanistas lutaram contra opressão, sejam líderes políticos ou religiosos que bateram de frente contra a tirania, a salvação da humanidade ao capitalismo virá destas colisões evolutivas que são inevitáveis.

Como a moralidade burguesa capitalista é piegas e ineficaz, há também a possibilidade do contraponto vir pelo “humanitarismo insipido”, de Frantz Fenon.

O humanismo de Althusser recusa a ideia que exista uma “essência” humana imutável, o qual se pode acreditar que é possível haver uma nova modelagem de ser humano sem que seja pelo modelo egoísta e opressor.

Voltando a Fenon, a justificativa de humanitarismo se dá na questão inevitável da libertação construída pelos termos nacionalistas.

Assim como os colonos salvaram-se dos colonizadores, o capitalismo que é algo imperial pode cair sob a ideologia nacionalista. Ao se fechar, o capitalismo perde a sua dinâmica mundial, deixando de ser o coronel do mundo.

Os irmãos Koch podem facilmente fazer doações caridosas em uma universidade, ao passo que investe em movimentações políticas que fazem cortes no auxílio-alimentação, além de negar assistência social universal. Os capitalistas também trabalham com dialética.

Papa Francisco já criticou a globalização, ao chamar de globalização da indiferença, Fenon conclama a massa europeia para deixar de ser a “bela adormecida” no bosque.

Gramsci declarou que o humanismo não visa à resolução pacífica das contradições, mas que as ações humanistas são as próprias contradições.

Ou seja, o que acabará com o capitalismo serão as suas próprias contradições.

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Recomendo a compra do livro e a sua leitura.


Fonte: Harvey, David, 1935 – 17 Contradições e o fim do capitalismo / David Harvey ; tradução Rogério Bettoni. – 1 . ed. – São Paulo : Boitempo, 2016.



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Resenha: 17 Contradições e o Fim do Capitalismo de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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