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Análise Música: Disparada – Geraldo Vandré & Jair Rodrigues

Por: Júlio César Anjos

Um verdadeiro artista nunca explica a sua própria obra. Seja pintor ou letrista, a comunicação tem que ser feita de tal forma que o assistente compreenda o que foi estipulado em criação. Isso deriva da compreensão de que se a obra tem que ser explicada, então teve problema de interlocução. Ou, como proferia o grande Mário Quintana: “Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro”.  Portanto, explicar a própria arte é broxante e perde todo o ar da graça e a sua concepção.

Uma boa arte parece incompreensível a um primeiro momento. Mas ao diagnosticar e analisar tal criação, o analista consegue desvendar o mistério contido na informação artística. É como se a representação fosse intuitiva, como acontece com a sigilação - da magia do caos -, em que símbolos inseridos no conteúdo são pistas para elucidar a explicação da obra produzida, fazendo a soma das partes serem complemento para gerar um todo.

Das grandes produções artísticas, Disparada, de Geraldo Vandré - canção imortalizada pela interpretação do cantor Jair Rodrigues -, ainda não tem uma definida explicação. Disparada não se trata somente de uma crítica à ditadura militar, nem também é uma homenagem a João Goulart, como muitos acreditam ser, esta canção é, na verdade, apenas uma analogia com característica escatológico-revolucionária. Só não vê quem não quer.

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Análise Música: Disparada – Geraldo Vandré e Jairzinho

A canção contém caráter narrativo [1ª pessoa], a figura de linguagem de cunho metafórico, com: começo, meio e fim bem definidos. A filosofia é fusão de Rousseau, Marx e cristianismo [não me aprofundarei na questão filosófica]. Enfim, segue análise da música:

 Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

Nesta primeira estrofe, o narrador diz que vem do sertão. Repare que é um retirante e, por isso, é um forasteiro fazendo “invasão”. Ou seja, é um invasor que incomodará a região invadida, assim como também poderá incomodar pelo jeito de pensar. O narrador é possivelmente da classe baixa e tem uma forma de pensar diferente das outras classes sociais.

Além disso, a mensagem que o narrador está a propagar pode não agradar quem a escuta [porque as pessoas têm resistência a mudanças].

Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar, eu vivo pra consertar

Como o narrador não é do mainstream social, é de vivência sofrida, tal condição o fez experimentar de várias desgraças em vida.

E como ele está narrando uma vivência, ele dá pista que: “vivo para consertar” [isso é caracterizado pelo tempo verbal], ou seja, saiu da condição de impotência pela limitação social para ser um agente de mudança [obteve poder].

Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu

Essa estrofe aponta o ponto de ruptura e a mudança de status social do próprio narrador. Se no passado o narrador retirante era apenas mais um “boi”, ou seja, só mais um na multidão [um mero “acebolado”], por causa de um fenômeno qualquer o fez mudar este status quo [não porque ele forçou isso: “não por um motivo meu”], mas porque houve mudança no sistema de liderança, o qual ele ocupou porque não há vácuo no poder [por isso que o narrador diz: “porém por necessidade”]. O narrador tomou o lugar do vaqueiro. Portanto, virou vaqueiro.

Por causa da modulação “Na boiada já fui boi, mas um dia me montei“, tal condição reflete que o narrador é realmente do “povo acebolado” [já foi boi], o que desmonta a tese de que a canção remeteria ao ex-presidente João Goulart [que era filho de coronel fazendeiro, dono de muitas áreas de terra e de muitas cabeças de gado]. João Goulart nunca foi povão [nunca foi gado].

Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei

Ao virar líder deste “sistema de poder”, em um primeiro momento comportou-se como os líderes anteriores, ao controlar o povo de forma a segurar muito gado e muita gente [restringir liberdade], ao ser linha-dura, além de surfar a ascensão social e aproveitar as vantagens que o poder dá: que é até mesmo o poder de manter o povo como gado.

Seguir como num sonho significa o problema do poder subir à cabeça, o deslumbre do poder que o torna um rei [rei significa aquele que pode tudo].

Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei

Como o sonho significa poder subir à cabeça, além de que o narrador estava deslumbrado pelo poder ao ponto de tornar-se o que mais temia: o mesmo tipo de líder opressivo que acha que pode tudo, este modelo continuado o fez acordar e enxergar a verdade: refletir que estava fazendo a mesma coisa que os outros líderes tiranos faziam.

Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente

Como o narrador acordou do fato que ele deixou de se sensibilizar pelos desafortunados, esquecendo-se até mesmo de onde veio, deste modo, o narrador não pode seguir com o mesmo modelo, ao virar, agora, de fato um agente de mudança. Porque ele vive pra consertar. Ou seja, se sensibilizará com o gado [a massa popular]. Com gente é diferente.

Ao rever os conceitos, ao decidir não ser como o líder do Sistema anterior [com os mesmos vícios], o narrador dá a entender metaforicamente que não será mais repressivo porque ter poder não significa ser tirânico.

Se você não concordar, não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar

E o narrador, também, arremata ao explicar ao receptor que está convicto e não mudará de ideia de jeito nenhum [não liga para quem é resistente a mudanças]. Se o ouvinte não concorda, não há o que fazer.

Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu

O narrador passou por tantas coisas, desde ser retirante do sertão até ser comandante do Sistema, ao conseguir por milagre deixar de ser só mais um para virar “rei”, com essa ascensão social o narrador desafia qualquer receptor a mostrar se teve algo próximo a esta trajetória de sucesso. É questão de meritocracia.

O narrador desafia e garante que ninguém chegou tão longe quanto ele. O narrador faz apelo à autoridade pra explicar estar certo em modificar o Sistema [repressivo]. Ou seja, o receptor não tem vivência nem maturidade para compreender a mudança porque não viveu na classe baixa e não sofreu o que o narrador sofreu.

Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
Já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei

Após refletir por muito tempo [“mundo foi rodando nas patas do meu cavalo”] E como o narrador aceita ser este agente de mudança [já que um dia montei agora sou cavaleiro], o narrador aceita o desafio e comandará um novo Sistema, mas sem o “pode-tudo” que a tirania fornece, ou seja, construirá um “reino que não tem rei”.

Conclusão: a canção Disparada é uma narrativa escatológico-revolucionária.

Dá lição de moral no sentido de que só porque se tem o poder não precisa ser tirânico; mostra que a insensibilidade de quem está no poder se dá porque o sujeito que se acha superior aos demais não se coloca no lugar dos desafortunados porque não teve, teoricamente, vivência de sofreguidão [não se coloca no lugar do outro]; e critica aqueles que possuem medo da mudança, em que o narrador impõe a metamorfose social ao invés de apenas sugerir.

A canção fez crítica à ditadura militar de 64? Também [porque foi um sistema repressivo]. Mas o foco da música é dar indireta a qualquer sistema tirânico que trata o povo como gado, e que dependendo das condições há de surgir até revolução [o gado virou boiadeiro]. A esses regimes a carapuça serve de forma salutar. E disparada pode ser traduzido como dispersão do povo para deixar de ser gado.

Enfim, Disparada é uma musica revolucionária - mas no sentido de reviravolta da evolução, e não no sentido de revolta violenta. Uma música para convencer tiranos a deixarem de ser.

Não é sobre João Goulart.




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Obs: Último texto do ano. Estou esgotado.





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Análise Música: Disparada – Geraldo Vandré & Jair Rodrigues de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em http://efeitoorloff.blogspot.com.

Comentários

  1. Sem palavras, pura arte ,linda composição, gigante interpretação, só podia ser ele jair Rodrigues

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  2. Obrigado por disponibilizar este belo trabalho analítico! Thank´s

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  3. Infelizmente quem não viveu nessa época de música inteligentes não mais verão

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  4. Gostei muito da sua interpretação, tb. entendi que não tem nada a ver com Jango, e que ele ganhou consciência a se tornou "cavaleiro de um reino que não tem Rei", o que pode significar um Socialismo. Só na segunda estrofe, eu acho que "Aprendi a dizer Não, ver a morte sem chorar", combinada com "a morte, o destino, tudo, estava fora do lugar, eu vivo pra consertar". Talvez ele tenha sido pistoleiro, contratado pelo patrão para eliminar quem tivesse, na opinião do patrão, "o destino e a morte fora do lugar", "consertando o destino" do desafeto do patrão. Afinal, se fosse "ver a morte sem chorar" só pela dureza diante do sofrimento da miséria, por que "aprendi a dizer Não"?

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  5. Complementando a informação, "Disparada" foi uma parceria entre Geraldo Vandré e Théo de Barros. Jair Rodrigues interpretou, acompanhado do Trio Maraiá e Trio Novo, vindo a ser a vencedora do Festival de Música Popular Brasileira em 1966.

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