Por: Rousseau
– Contrato Social (Resumo Cesaranjos)
LIVRO
I
Cuidarei
de ligar sempre, nesta pesquisa, o que o direito permite com o que o direito
prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade de modo algum se encontrem
divididas.
I
– Assunto deste primeiro livro.
Mas
a ordem social é um direito sagrado que serve de alicerce a todos os outros.
Esse direito, todavia, não vem da Natureza; está, pois, fundamentado sobre
convenções.
II
Das Primeiras Sociedades.
É
este também o sentimento de Hobbes. Eis assim a espécie humana dividida em
rebanhos de gado, cada qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar.
Portanto,
se há escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força
constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou.
Seja
como for, não se pode deixar de convir em que Adão não foi soberano do mundo
como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permaneceu o único habitante; e o que
havia de cômodo nesse império era o fato de que o monarca, seguro em seu trono,
não tinha a recear nem rebeliões, nem guerras, nem conspirações.
III
– Do direito do mais forte.
Se
é preciso obedecer pela força, não é necessário obedecer por dever, e se não
mais se é forçado a obedecer, não se é a isso mais obrigado. Vê-se, pois, que a
palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui coisa nenhuma.
Quando
um assaltante me surpreende no canto de um bosque, sou forçado a dar-lhe a
bolsa; mas no caso de eu poder subtrai-la, sou em sã consciência obrigado a
entregar-lha? Afinal a pistola que ele empunha é também um poder.
IV
– Da escravidão.
Mesmo
que cada qual pudesse alienar-se a si mesmo, não poderia alienar os filhos:
estes nascem homens e livres; sua liberdade pertence-lhes; ninguém, exceto eles
próprios, tem o direito de dela dispor. Antes de atingirem a idade da razão,
pode o pai estipular, em nome deles, condições para a sua conservação, para o
seu bem-estar, mas não os pode dar irrevogável e incondicionalmente, porque tal
dom é contrário aos fins da Natureza e sobrepuja os direitos da paternidade. Portanto,
para que um governo arbitrário fosse legítimo, seria preciso que o povo, em
cada geração, fosse senhor de o admitir ou rejeitar; mas então tal governo já
não seria arbitrário.
Que
direito teria meu escravo contra mim, uma vez que me pertence tudo quanto ele
possui, e, sendo meu o seu direito, esse meu direito contra mim mesmo não é
porventura um termo sem sentido?
É
a relação das coisas, e não dos homens, que constitui a guerra, e como o estado
de guerra não pode nascer de simples relações pessoais, mas unicamente de
relações reais, a guerra privada, ou de homem contra homem, não pode existir,
nem no estado natural, em que não há nenhuma propriedade constante, nem no
estado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis.
Não
é, pois, a guerra uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado
para Estado, na qual os particulares apenas acidentalmente são inimigos, não na
qualidade de homens, nem mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como
membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado não pode ter
como inimigo senão outro Estado, nunca homens, entendido que entre coisas de naturezas
diversas é impossível fixar uma verdadeira relação.
O
estrangeiro, seja rei, particular, ou povo, que roube, mate ou detenha os vassalos,
sem declaração de guerra ao príncipe, não é um inimigo, é um salteador. Mesmo
em plena guerra, um príncipe justo apropria-se, em país inimigo, completamente
de tudo que pertence ao público, mas respeita a pessoa e os bens dos
particulares; respeita direitos sobre os quais estão alicerçados os seus. Como
o objetivo da guerra consiste em destruir o Estado inimigo, tem-se o direito de
matar os defensores enquanto estiverem com as armas na mão; mas tão logo as
deponham e se rendam, cessam de ser inimigos ou instrumentos do inimigo, voltam
a ser simplesmente homens, e não mais se dispõe de direito sobre suas vidas.
Assim,
por qualquer lado que se encarem as coisas, é nulo o direito de escravizar, não
só pelo fato de ser ilegítimo, como porque é absurdo e nada significa. As
palavras escravatura e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Seja
de homem para homem, seja de um homem para um povo, este discurso será
igualmente insensato: “Faço contigo um contrato, todo em teu prejuízo e todo em
meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu observarás
enquanto me aprouver.”
V
– É preciso remontar sempre a um primeiro convênio.
Um
povo, diz Grotius, pode entregar-se a um rei. Segundo Grotius, um povo é, pois,
um povo antes de se entregar a um rei. Essa doação é um ato civil; supõe uma
deliberação pública. Antes, portanto, de examinar o ato pelo qual o povo elege
um rei, seria bom examinar o ato pelo qual o povo é um povo, porque esse ato,
sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade.
VI
– Do pacto social.
“Encontrar
uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e
os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça
portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.”
Todas
essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação
total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a
comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo
a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os
outros.
A
pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o
nome de cidade (3), e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado
por seus membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo;
autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No que concerne aos
associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente
cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana, e vassalos,
quando sujeitos às leis do Estado.
VII
– Do soberano.
Vê-se,
por esta fórmula, que o ato de associação encerra um acordo recíproco do
público com os particulares, e que cada indivíduo, contratante, por assim
dizer, consigo mesmo, se acha obrigado sob uma dupla relação, a saber: como
membro do soberano para com os particulares, e como membro do Estado para com o
soberano. Mas não se pode aqui aplicar a máxima do direito civil, que ninguém
está obrigado aos acordos tomados consigo mesmo; porque há grande diferença
entre obrigar-se consigo mesmo ou com um todo de que se faz parte.
Tão
logo se encontre a multidão reunida num corpo, não se pode ofender um dos
membros sem atacar o corpo, menos ainda ofender o corpo sem que os membros
disso se ressintam.
A
fim de que não constitua, pois, um formulário inútil, o pacto social contém
tacitamente esta obrigação, a única a poder dar forças às outras: quem se
recusar a obedecer à vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em
conjunto, o que apenas significa que será forçado a ser livre. Assim é esta
condição: oferecendo os cidadãos à pátria, protege-os de toda dependência pessoal;
condição que promove o artifício e o jogo da máquina política e que é a única a
tornar legítimas as obrigações civis, as quais, sem isso, seriam absurdas,
tirânicas e sujeitas aos maiores abusos.
VIII
– Do estado civil.
Embora
se prive, nesse estado, de diversas vantagens recebidas da Natureza, ganha
outras tão grandes, suas faculdades se exercitam e desenvolvem, suas idéias se
estendem, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto,
que, se os abusos desta nova condição, não o degradassem com frequência a uma
condição inferior àquela de que saiu, deveria abençoar incessantemente o ditoso
momento em que foi dali desarraigado para sempre, o qual transformou um animal
estúpido e limitado num ser inteligente, num homem.
Para
que não haja engano em suas compensações, é necessário distinguir a liberdade
natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil que é limitada
pela liberdade geral, e a posse, que não é senão o efeito da força ou do
direito do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode ser baseada num
título positivo.
Poder-se-ia,
em prosseguimento do precedente, acrescentar à aquisição do estado civil a
liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo,
posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravidão, e a obediência à
lei a si mesmo prescrita é a liberdade.
IX
– Do domínio real.
Mas
como as forças da cidade são incomparavelmente maiores que as de um particular,
o domínio público está também no fato mais forte e irrevogável, sem que o seja
mais ou menos legítimo para os estrangeiros; porque o Estado, no tocante a seus
membros, é senhor de todos os seus bens, pelo contrato social, que, no Estado,
serve de base a todos os direitos; mas não o é, no que concerne às outras autoridades,
senão pelo direito de primeiro ocupante, recebido dos particulares.
Em
geral, para autorizar sobre um terreno qualquer o direito de primeiro ocupante,
são necessárias as seguintes condições: primeiramente, que esse terreno ainda
não se encontre habitado por ninguém; em segundo lugar, que apenas seja ocupada
a área de que se tem necessidade para subsistir; em terceiro, que se tome posse
dela, não em virtude de uma vã cerimônia, mas pelo trabalho e pela cultura,
único sinal de propriedade que, à falta de títulos jurídicos, deve ser
respeitado por outrem.
Como
pode um homem ou um povo apropriar-se de um imenso território e dele privar
todo o gênero humano, graças a uma usurpação punível, uma vez que esta retira
aos demais homens a residência e os alimentos que a Natureza lhes oferece em
comum?
Concebe-se
como as terras dos particulares, reunidas e contínuas se transformam em
território público, e como o direito de soberania, estendendo-se dos vassalos
ao terreno por eles ocupado, se toma a um tempo real e pessoal, o que coloca os
possuidores numa maior dependência e faz de suas próprias forças os penhores de
sua fidelidade; vantagem que, parece, não foi bem compreendida pelos antigos
monarcas, os quais, atribuindo-se apenas os títulos de reis dos persas, dos
citas, dos macedônios, davam a impressão de que se olhavam, de preferência,
como os chefes de homens e não como senhores do país. Os monarcas de hoje
chamam-se a si mesmos, mais habilmente, reis de França, de Espanha, de
Inglaterra, etc.
Conservando
dessa maneira o terreno, sentem-se mais seguros para conservar os habitantes.
Então,
os possuidores, considerados como depositários do bem público, com seus
direitos respeitados por todos os membros do Estado, e mantidos por todas as suas
forças contra o estrangeiro, em virtude de uma cessão vantajosa ao público e
mais ainda a si mesmos, adquirem, por assim dizer, o que tinham dado: paradoxo
facilmente explicável pela distinção dos direitos que o soberano e o
proprietário possuem sobre o mesmo solo.
LIVRO
II
I
– A soberania é inalienável.
A
primeira e mais importante conseqüência dos princípios acima estabelecidos está
em que somente a vontade geral tem possibilidade de dirigir as forças do
Estado, segundo o fim de sua instituição, isto é, o bem comum; pois, se a
oposição dos interesses particulares tomou necessário o estabelecimento das sociedades,
foi a conciliação desses mesmos interesses que a tornou possível. [...] e, se
não houvesse algum ponto em torno do qual todos os interesses se harmonizam,
sociedade nenhuma poderia existir. Ora, é unicamente à base desse interesse
comum que a sociedade deve ser governada.
Com
efeito, se não é impossível fazer concordar uma vontade particular com a
vontade geral, em torno de algum ponto, é pelo menos impossível fazer com que
esse acordo seja durável e constante; porque a vontade particular, por sua
natureza, tende às preferências, e a vontade geral à igualdade.
II
– A soberania é indivisível.
Pela
mesma razão que a torna alienável, a soberania é indivisível, porque a vontade
é geral (5), ou não o é; é a vontade do corpo do povo, ou apenas de uma de suas
partes. No primeiro caso, essa vontade declarada constitui um ato de soberania
e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou um ato de
magistratura: é, no máximo, um decreto. Porém nossos políticos, não podendo
dividir a soberania em seu princípio, dividem-na em força e em vontade, em
poder legislativo e em poder executivo, em direitos de impostos, de justiça e
de guerra, em administração interior e em poder de tratar com o estrangeiro;
ora confundem todas essas partes, ora as separam; fazem do soberano um ser
fantástico formado de peças ajustadas; é como se compusessem o homem reunindo
diversos corpos, um dos quais teria os olhos, outro os braços, outro os pés, e
nada mais. [...] Tais são aproximadamente os engodos de nossos políticos:
depois de haverem desmembrado o corpo social graças a uma prestidigitação digna
da feira, reúnem as peças não se sabe como.
III
– A vontade geral pode errar.
Finalmente,
quando uma dessas associações se apresente tão grande a ponto de sobrepujar
todas as outras, não mais tereis por resultado uma soma de pequenas diferenças,
porém uma diferença única; deixa de haver então a vontade geral, e a opinião
vencedora é tão somente uma opinião particular.
IV
– Dos limites do poder soberano.
Se
o Estado ou a cidade só constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na união
de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria
conservação, é necessário uma força universal e compulsória para mover e dispor
cada uma das partes da maneira mais conveniente para o todo. Como a Natureza dá
a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, dá o pacto social
ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder
que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania.
Deve-se
por aí conceber que o que generaliza a vontade é menos o número de vozes que o
interesse comum que as une; porque, numa instituição, cada qual se submete necessariamente
às condições que impõe aos outros: admirável acordo do interesse e da justiça,
que fornece às deliberações comuns um caráter eqüitativo, o qual se vê
desvanecer-se na discussão de todo negócio particular, à falta de um interesse
comum que una e identifique a regra do juiz com a da parte.
V
– Do direito de vida e morte.
Todo
homem tem o direito de arriscar a própria vida a fim de a conservar a pena de morte,
imposta aos criminosos. Pode ser de certa forma encarada sob esse ponto de
vista: para não ser vítima de um assassino é que se consente em morrer, sendo o
caso. Nesse tratado, longe de se dispor da própria vida, pensa-se em garanti-la,
e não é de presumir premedite então um contratante fazer-se enforcar.
De resto, todo malfeitor, ao
atacar o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da
pátria.
Os
processos e a sentença constituem as provas da declaração de que o criminoso
rompeu o tratado social, e, por conseguinte, deixou de ser considerado membro
do Estado. Ora, como ele se reconheceu como tal, ao menos pela residência, deve
ser segregado pelo exílio, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo
público, pois um inimigo dessa espécie não é uma pessoa moral; é um homem, e
manda o direito da guerra matar o vencido.
Ademais,
a freqüência dos suplícios constitui sempre um sinal de fraqueza ou indolência
no governo: não existe malvado que não possa servir para alguma coisa. Não se tem o direito de matar, mesmo para exemplo,
senão aquele que se não pode conservar sem perigo.
Num
Estado bem governado, há poucas punições, não porque se concedam muitas graças,
mas pelo fato de haver poucos criminosos; a quantidade de crimes assegura a
impunidade, quando o Estado se deteriora.
VI
– Da lei.
No
estado natural, onde tudo é comum, nada devo àqueles a quem nada prometi; só
reconheço como sendo de outrem o que me é inútil. Isso não ocorre no estado
civil, onde todos os direitos são fixados pela lei.
Toda
justiça vem de Deus; só Ele é sua fonte; mas, se soubéssemos recebê-la de tão
alto, não teríamos necessidade nem de governo nem de leis.
Mas
quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só a si mesmo considera; e se se
forma então uma relação, é do objeto inteiro sob um ponto de vista ao objeto
inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma divisão do todo. Então, a matéria
sobre a qual estatuímos passa a ser geral, como a vontade que estatui. A esse ato
é que eu chamo uma lei.
Quando
digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os
vassalos em corpo e as ações como sendo abstratas, jamais um homem como
indivíduo, nem uma ação particular. Destarte, pode a lei estatuir perfeitamente
que haverá privilégios, mas não pode ofertá-los nominalmente a ninguém; pode a
lei instituir diversas classes de cidadãos, assinalar inclusive as qualidades
que darão direito a essas classes; mas não pode nomear este ou aquele para ser
nelas admitido; pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária,
mas não pode eleger um rei nem nomear uma família real: numa palavra, toda função
que se relacione com um objeto individual não pertence de nenhum modo ao poder
legislativo.
Mesmo
o que é ordenado pelo soberano acerca de um objeto particular não é igualmente
uma lei, mas um decreto; nem constitui um ato de soberania, mas de
magistratura.
Eu
chamo, pois, república todo Estado regido por leis, independente da forma de
administração que possa ter; porque então somente o interesse público governa,
e a coisa pública algo representa. Todo governo legítimo é republicano.
De
que maneira uma turba cega, que em geral não sabe o que quer, porque raramente
conhece o que lhe convém, executará por si mesma um empreendimento de tal
importância e tão difícil como um sistema de legislação?
VII
– Do legislador.
No
nascimento das sociedades, diz Montesquieu, encontram-se os chefes das
repúblicas que fazem as instituições, e é, em seguida, a instituição que forma os
chefes das repúblicas.
Numa
palavra, é preciso que arrebate ao homem as forças que lhe são inerentes, para
lhe dar forças estranhas, das quais ele não possa fazer uso sem a ajuda alheia.
Quanto mais essas forças naturais estejam mortas e aniquiladas, maiores e mais duráveis
são as aquisições, e também mais sólida e perfeita é a instituição; de sorte
que, se cada cidadão nada é, nada pode ser sem a ajuda de todos os outros, e a
força adquirida pelo todo é igual ou superior à soma das forças naturais de todos
os indivíduos, pode-se dizer que a legislação se encontra no ponto mais alto de
perfeição que possa ser atingido.
O
legislador, a todos os respeitos, é no Estado um homem extraordinário. Se o
deve ser por seu engenho, não o é menos por seu emprego; não é de modo algum
magistratura, não é de nenhum modo soberania. O emprego, que constitui a
república, não entra em absoluto em sua constituição; é uma função particular e
superior, que nada tem de comum com o império humano; porque, se quem dirige os
homens não deve dirigir as leis, quem dirige as leis não deve, pela mesma
razão, dirigir os homens; do contrário, suas leis, ministras de suas paixões,
perpetuariam muitas vezes suas injustiças, e ele jamais poderia evitar que intuitos
particulares alterassem a santidade de sua obra.
Ao
dar leis à sua pátria, começou Licurgo por abdicar a realeza. Era costume da
maioria das cidades gregas confiar a estrangeiros o estabelecimento de suas
leis. As modernas repúblicas da Itália imitaram muitas vezes esse uso. A de
Genebra fez o mesmo e achou-se bem (11). Roma, em seus mais belos tempos, viu
renascer em seu seio todos os crimes da tirania e viu-se prestes a perecer,
pelo fato de haver reunido sobre as mesmas cabeças a autoridade legislativa e o
poder soberano.
Quem
redige as leis não tem, portanto, ou não deve ter nenhum direito legislativo, e
o próprio povo não pode, mesmo se o quisesse, despojar-se desse incomunicável
direito, porque, de acordo com o pacto fundamental, a vontade geral é a única
que obriga os particulares, e nunca se pode afirmar que uma vontade particular
está conforme a vontade geral, senão depois de havê-la submetido aos livres
sufrágios do povo.
VIII
– Do povo.
Assim
como um grande arquiteto, antes de construir, observa e sonda o solo, para ver
se este tem condições de sustentar o peso, o sábio instituidor não começa por
redigir boas leis em si mesmas; mas examina anteriormente se o povo, ao qual
são destinadas, está apto para as aceitar. Foi por isso que Platão recusou dar
leis aos árcades e aos cirenaicos, sabendo que esses dois povos eram ricos e
não podiam admitir a igualdade; foi também por isso que se viram em Creta leis
perfeitas e homens perversos, porque Minos só havia disciplinado um povo
sobrecarregado de vícios.
Os
povos, assim como os homens, somente são dóceis na juventude; ao envelhecerem,
tornam-se incorrigíveis; uma vez estabelecidos os costumes e enraizados os
preconceitos, constitui empreendimento perigoso e inútil pretender reformá-los.
Não
quer isso dizer que, do mesmo modo como certas enfermidades transtornam a mente
dos homens e nelas apagam a lembrança do passado, não se achem às vezes, na
duração dos Estados, épocas violentas em que as revoluções fazem no povo o
mesmo que determinadas crises fazem nos indivíduos, em que o horror do passado
substitui o esquecimento, e o Estado, incendiado pelas guerras civis, renasce
por assim dizer das cinzas e readquire o vigor da juventude, saindo dos braços
da morte. Foi assim Esparta no tempo de Licurgo, foi assim Roma após os
Tarquínios, e foram assim, entre nós, a Holanda e a Suíça, depois da expulsão
dos tiranos.
As
agitações, então, podem destruí-lo, sem que as revoluções tenham possibilidades
de o restabelecer; e tão logo seus grilhões se rompam, tomba o povo disperso e
deixa de existir. Daí por diante, passa a necessitar de um senhor, não de um
libertador. Povos livres, recordai-vos desta máxima: Pode-se adquirir a
liberdade, mas nunca recobrá-la.
Pedro
o Grande tinha o talento imitativo, não o verdadeiro gênio, o que cria e tudo
faz do nada. Algumas coisas que fez eram boas, a maioria delas indevida. Ele
viu que seu povo era bárbaro, mas não viu em absoluto que seu povo não estava
amadurecido para a polícia; ele desejou civilizá-lo, quando devia torná-lo
aguerrido; quis, de início, fazer deles alemães, ingleses, quando era preciso
começar por fazê-los russos; impediu seus vassalos de jamais se tornarem o que
poderiam realmente ser, persuadindo-os de que eram aquilo que são. É dessa
maneira que o preceptor francês educa o seu aluno, fazendo-o brilhar um
momento, durante a infância, para, em seguida, não vir a ser jamais ninguém. O
império russo desejará subjugar a Europa, e acabará por ser subjugado.
IX
– Continuação do capítulo precedente.
A
administração, em primeiro lugar, torna-se mais penosa nas grandes distâncias,
assim como um peso qualquer se torna mais pesado na ponta de uma alavanca
maior. Torna-se mais onerosa à medida que os degraus se multiplicam; porque cada
cidade tem, de início, a sua administração, que o povo paga; cada distrito a
sua, paga ainda pelo povo; a seguir, cada província, depois os grandes
governos, as satrapias, os vice-reinados, cuja administração se torna cada vez
mais cara, à medida que se sobe, e sempre à custa do inditoso povo; vem, por
fim, a administração suprema, que tudo esmaga: com tanta sobrecarga a
exauri-los continuamente, os vassalos, longe de serem melhor governados por
essas diferentes ordens, acabam por sê-lo pior que se tivessem um só desses
governos a dirigi-los. Não obstante, apenas sobram recursos para os casos
extraordinários; e quando se faz preciso a eles recorrer, é que se encontra o
Estado às vésperas da ruína.
Isso
não é tudo: não somente o governo possui menos vigor e rapidez para fazer
observar as leis, impedir os vexames, corrigir os abusos, prevenir os
empreendimentos sediciosos que possam ser promovidos nos pontos distantes, como
também o povo demonstra menor afeição aos chefes, os quais nunca vê, à pátria, que
a seus olhos se assemelha ao mundo, e aos concidadãos cuja maioria lhe é
estranha. As mesmas leis não podem convir igualmente a tantas províncias
diversas, com costumes diferentes, e climas opostos, e que não admitem a mesma
forma de governo. Leis diferentes engendram perturbação e confusão no seio dos
povos que, vivendo sob a direção dos mesmos chefes, em contínua comunicação,
transitam de um lado para outro ou se casam entre si, e que, sujeitos a outros
costumes, nunca sabem se o próprio patrimônio lhes pertence. Em meio à multidão
de homens que se desconhecem mutuamente, reunidos pela sede da suprema
administração num mesmo lugar, os talentos permanecem ocultos, as virtudes ignoradas
e os vícios impunes. Os chefes, sobrecarregados de tarefas, nada vêem por si
mesmos; comissários governam o Estado. Enfim, as medidas necessárias à
manutenção da autoridade geral, a que tantos oficiais destacados em regiões
longínquas desejam subtrair-se, quando não ludibriar, absorvem todos os
cuidados públicos; e nada mais resta para a felicidade do povo, exceto o
indispensável à sua defesa em caso de necessidade; e é assim que um corpo muito
grande, por sua constituição, definha e perece, esmagado pelo próprio peso.
X
– Continuação.
Pode-se
mensurar um corpo político de duas maneiras, a saber: pela extensão do
território, e pelo número da população; e entre uma e outra dessas medidas, há
uma relação conveniente para dar ao Estado sua verdadeira grandeza. São os
homens que fazem o Estado, e é o terreno que alimenta os homens; essa relação
consiste, pois, em que a terra baste para a manutenção de seus habitantes e
haja tantos habitantes quantos a terra possa nutrir. É nessa proposição que se
acha o maximum de força de um número dado de povo; porque, se houver terreno em
demasia, será oneroso protegê-lo, a cultura se mostrará insuficiente, o produto
supérfluo; e será a causa próxima de guerras defensivas. Se não houver terreno
suficiente, o Estado se achará, para o suprir, à discrição de seus vizinhos; e
será a causa próxima de guerras ofensivas.
Não
quer isto dizer não haja muitos governos estabelecidos durante essas
tempestades, mas então são esses mesmos governos que destroem o Estado. Os
usurpadores conduzem ou escolhem sempre esses tempos de perturbações para fazerem
passar, graças ao espanto público, leis destruidoras que o povo não adotaria
jamais em situação normal. A escolha do momento da instituição é um dos
caracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir a obra do legislador da
obra do tirano.
E
qual é o povo apto a receber a legislação? Aquele que, estando já ligado
através de alguma união de origem, de interesse ou convenção, não foi ainda
submetido ao verdadeiro jugo das leis; aquele que não possui nem costumes nem
superstições bem arraigadas; aquele que não receia ser esmagado por uma invasão
súbita, que, sem entrar nas querelas de seus vizinhos, tem condições de
resistir sozinho a cada um deles ou obter a ajuda de um a fim de repelir o
outro; aquele em que cada membro pode ser conhecido de todos, e em que não se
faz necessário sobrecarregar um homem de um grande fardo que não possa
carregar; aquele que pode dispensar os outros povos, e do qual nenhum outro
povo deixa de necessitar (13); aquele que nem é rico, nem é pobre, e pode
bastar-se a si mesmo; enfim, aquele que reúne a consistência de um povo antigo
com a docilidade de um hodierno. O que torna penosa a obra da legislação não é
tanto o que é preciso estabelecer, mas sim o que é preciso destruir; e o que
torna o êxito tão raro é a impossibilidade de encontrar a simplicidade da
Natureza junto às necessidades da sociedade. Todas essas condições, é verdade,
dificilmente se encontram reunidas: eis por que se vêem poucos Estados bem
constituídos.
XI
– Dos diversos sistemas de legislação.
Já
tive ocasião de dizer em que consiste a liberdade civil; a respeito da
igualdade, não se deve entender por essa palavra que os graus de poder e
riqueza sejam absolutamente os mesmos, mas que, quanto ao poder, esteja acima
de toda violência e não se exerça jamais senão em virtude da classe e das leis;
e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar
um outro, e nem tão pobre para ser constrangido a vender-se (14): o que supõe,
por parte dos grandes, moderação de bens e de crédito, e, do lado dos pequenos,
moderação de avareza e ambição.
Essa
igualdade, dizem, é uma quimera especulativa, que não pode existir na prática;
contudo, se o abuso é inevitável, segue-se que se não deve ao menos
regulamentá-lo? É precisamente porque a força das coisas tende sempre a
destruir a igualdade que a força da legislação deve sempre tender a
conservá-la.
Permanecei
bárbaros e ictiófagos; vivereis assim mais tranqüilos, quiçá sereis melhores, e
certamente mais felizes.
Foi
assim que os hebreus outrora, e recentemente os árabes, tiveram como matéria
principal a religião; os atenienses, as letras; Cartago e Tiro, o comércio;
Rodes, a marinha; Esparta, a guerra; e Roma, a virtude. O autor de O Espírito
das Leis demonstrou, em inúmeros exemplos, com que arte dirige o legislador a
instituição para cada uma dessas matérias.
XII
– Divisão das leis.
As
leis que regulamentam essas relações são denominadas leis políticas; chamam-se
também leis fundamentais, não sem alguma razão, no caso de serem feitas com
sabedoria.
segunda
relação é a dos membros entre si ou com o corpo inteiro, e essa relação deve
ser, no primeiro caso, tão pequena, e, no segundo, tão grande quanto possível;
[...]E desta segunda relação que nascem as leis civis.
Pode-se
considerar uma terceira espécie de relação entre o homem e a lei: essas três
espécies de leis acrescenta-se uma quarta [...] autoridade. Falo dos usos, dos
costumes e, em especial, da opinião, parte desconhecida de nossos políticos,
mas da qual depende o êxito de todas as outras.
LIVRO
III
I
– Do governo em geral.
Do
soberano recebe o governo as ordens a serem dadas ao povo, e para que o Estado
se mantenha em perfeito equilíbrio, se faz mister, tudo compensado, haja igualdade
entre o produto ou o poder governamental, tomado em si mesmo, e o produto ou o
poder dos cidadãos, que, de um lado, são soberanos, e vassalos de outro.
Suponhamos
seja o Estado composto de dez mil cidadãos. O soberano não deve ser considerado
senão coletivamente e em corpo. Cada partícula; porém, na qualidade de vassalo,
é considerado como indivíduo. Assim, o soberano está para o vassalo na
proporção de dez mil para um, isto é, cada membro do Estado possuí a décima
milésima parte da autoridade soberana, embora esteja todo inteiro a ela submetido.
Seja o povo constituído de cem mil homens, o estado dos vassalos não muda, e
cada qual suporta igualmente todo o império das leis, ao passo que o seu
sufrágio, reduzido a um centésimo-milésimo, é dez vezes menos influente na sua
relação. Então, como o vassalo permanece sempre um, aumenta a relação do
soberano em razão do número dos cidadãos; de onde se segue que quanto mais o
Estado cresce, mais diminui a liberdade.
Ora,
quanto menos as vontades particulares se relacionam com a vontade geral, isto
é, os costumes, as leis, tanto mais deve aumentar a força repressiva. Portanto,
para ser bom, deve o governo ser relativamente mais forte à medida que o povo
seja mais numeroso. Por outro lado, dando o engrandecimento do Estado aos
depositários da autoridade pública maior número de tentações e meios de abusar
de seu poder, de mais força necessita o governo para conter o povo, e mais
força requer o soberano para conter o governo. Não falo aqui de uma força
absoluta, mas da força relativa das diversas partes do Estado.
O
governo é, em pequena escala, o que o corpo político, que o encerra, é em
grande escala. Constitui uma pessoa moral, dotada de determinadas faculdades,
ativa como o soberano, passiva como o Estado, suscetível de ser decomposta em
outras relações semelhantes: de onde nasce, por conseguinte, uma nova proporção,
e ainda outra nesta aqui, segundo a ordem dos tribunais, até que se chegue a um
meio-termo indivisível, isto é, a um único chefe ou magistrado supremo, que podemos
representar. em meio dessa progressão, como a unidade entre a série das frações
e a dos números.
II
– Do princípio que constitui as diversas formas de governo.
O
corpo do magistrado pode ser composto de um maior ou menor número de membros.
Dissemos já que a relação do soberano com os vassalos era tanto maior quanto
mais numeroso fosse o povo, e, por evidente analogia, o mesmo podemos dizer do
governo em relação aos magistrados.
Portanto,
os magistrados são tão mais numerosos quanto mais débil se mostre o governo. E
como esta máxima é fundamental, apliquemo-nos a melhor esclarecê-la.
Numa
legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula; a
vontade do corpo, própria ao governo, bastante subordinada; e, por conseguinte,
a vontade geral ou soberana sempre dominante é a regra única de todas as
outras.
Venho
de provar que o governo enfraquece à medida que os magistrados se multiplicam,
e demonstrei mais acima que quanto mais o povo é numeroso, mais a força
repressiva deve aumentar: infere-se daí que a relação entre os magistrados e o
governo deve ser o inverso das relações entre os vassalos e o soberano, isto é,
quanto mais se amplia o Estado, tanto mais deve o governo restringir-se, da
mesma maneira que o número de chefes diminui em razão do aumento numérico do
povo.
III
– Divisão dos governos.
O
soberano pode, de início, confiar o depósito do governo ao povo em conjunto ou
à maioria do povo, de modo a haver maior número de cidadãos magistrados que
simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de governo o nome de
democracia. Ou pode então restringir o governo entre as mãos de um pequeno
número, de sorte a haver maior número de cidadãos particulares que de
magistrados, e esta forma de governo recebe o nome de aristocracia. Finalmente,
pode o soberano concentrar todo o governo em mãos de um magistrado único, do
qual todos os demais recebem o poder. Esta terceira forma é a mais comum de todas,
e chama-se monarquia, ou governo real.
IV
– Da democracia.
Ademais,
que de coisas difíceis de reunir não supõe tal governo? Primeiramente, um
Estado bastante pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada
cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande
simplicidade de costumes, que antecipe a multidão de negócios e as discussões
espinhosas; em seguida, bastante igualdade nas classes e nas riquezas, sem o
que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade;
enfim, pouco ou nenhum luxo; porque ou o luxo é o efeito das riquezas, ou as
torna necessárias, já que corrompe ao mesmo tempo ricos e pobres, uns pela
posse, outros pela cobiça, vende a pátria à lassidão e à vaidade, e afasta do
Estado todos os cidadãos, submetendo-os uns aos outros, e todos à opinião.
Se
houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito
governo não convém aos homens.
V
– Da aristocracia.
Temos
aqui duas pessoas morais distintas, a saber, o governo e o soberano, e, por conseguinte,
duas vontades gerais: uma, concernente a todos os cidadãos; outra, apenas aos
membros da administração. Assim sendo, embora possa o governo regulamentar sua
polícia interior como bem lhe aprouver, só poderá falar ao povo em nome do
soberano, isto é, em nome do próprio povo, coisa que jamais se deve esquecer.
As
primeiras sociedades governaram-se aristocraticamente. Os chefes de família
deliberavam entre si sobre os negócios públicos. Os jovens cediam sem
dificuldade perante a autoridade da experiência. Daí os nomes de padres,
anciãos, senado, gerontes. Os selvagens da América setentrional ainda assim se governam
em nossos dias, e são muito bem governados.
Mas,
à medida que a desigualdade de instituição sobrepujou a desigualdade natural, a
riqueza ou o poder foi preferido à idade, e a aristocracia passa a ser eletiva.
Finalmente, o poder, transmitido juntamente com os bens dos pais aos filhos,
enobrecendo as famílias, torna o governo hereditário, e viram-se então senadores
de apenas vinte anos.
Há,
pois, três espécies de aristocracia: natural, eletiva e hereditária. A primeira
não convém senão a povos simples; a terceira é o pior de todos os governos; a
segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente dita.
Numa
palavra, a ordem mais justa e natural é a em que os mais sábios governem a
multidão, quando estamos seguros de que a governarão em benefício dela, e não
em benefício próprio. Não é de nenhum modo necessário multiplicar em vão as
alçadas, nem fazer com vinte mil homens o que cem homens escolhidos fazem ainda
melhor. Deve-se, porém, assinalar que o interesse do corpo começa aqui a
dirigir com menos eficiência a força do público no que tange à vontade geral, e
que outro declive inevitável subtrai às leis uma parte do poder executivo.
Contudo,
se exige a aristocracia menos virtudes que o governo popular, requer, em troca,
outras que lhe são próprias, tais como a moderação por parte dos ricos, e o
contentamento por parte dos pobres; porque, parece, uma rigorosa igualdade
estaria aí deslocada: nem mesmo Esparta a observou.
VI
– Da monarquia.
Ao
contrário das outras administrações, em que um ser coletivo representa um indivíduo,
nesta aqui é um indivíduo que representa um ser coletivo; desse modo, a unidade
moral que constitui o príncipe é simultaneamente uma unidade física, na qual
todas as faculdades que a lei reuniu na outra, com tantos esforços, se achem
naturalmente reunidas. [eu: ou seja, Monarquia em cultura esparsa não
funciona.]
Os
reis desejam ser absolutos, e de longe lhes bradamos que a melhor maneira de o
serem consiste em se fazerem amar por seus povos. Esta máxima é muito bela e
verdadeira em certo sentido. Infelizmente, sempre rirão disso nas cortes. O
poder oriundo do amor dos povos é sem dúvida o maior, mas precário e condicional;
os príncipes jamais se contentarão com ele. Os melhores reis desejam ser
malvados, quando lhes apetece, sem cessarem de ser os senhores. Por mais que se
esforce um orador político em adverti-los de que a força do povo é a sua
própria e de que seu maior interesse deve consistir em que o povo seja florescente,
numeroso, temível, eles sabem perfeitamente que tal coisa não é verdade.
Seu
interesse pessoal está, antes de mais nada, em que o povo seja débil,
miserável, e jamais lhes possa resistir. Confesso que, imaginando os vassalos
sempre inteiramente submissos, me parece que o interesse dos príncipes
residiria na existência de um povo poderoso, a fim de que, sendo dele tal
poder, o tornasse temido de seus vizinhos; como, porém, tal interesse é secundário
e subordinado, e as duas suposições se mostram incompatíveis, é natural que os
príncipes dêem sempre preferência à sentença mais imediatamente útil para eles;
é o que Samuel, com vigor, apontava aos hebreus, é o que Maquiavel demonstrou
com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as ele, e grandes, aos povos.
O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.
Vimos,
através das relações gerais, que a monarquia só é conveniente aos vastos
Estados, e o mesmo acharemos examinando-a em si mesma. Quanto mais numerosa for
a administração pública, mais a relação entre o príncipe e os vassalos diminui
e se aproxima da igualdade, de sorte que tal relação é uma ou a própria
igualdade na democracia. Essa mesma relação aumenta à medida que o governo se
contrai, e atinge o seu maximum quando o governo se acha em mãos de uma única
pessoa. Passa a haver então uma enorme distância entre o príncipe e o povo, e o
Estado carece de ligação. Para formá-la, são necessárias as ordens
intermediárias: príncipes, grandes, nobreza, que as devem preencher. Ora, nada
do que foi dito convém a um pequeno Estado, pois, antes, o arruínam.
Contudo,
se é difícil que um grande Estado seja bem governado, é mais difícil ainda
sê-lo por um só homem, e todos sabemos o que sucede quando o rei nomeia
substitutos.
Um
defeito essencial e inevitável, que sempre porá o governo monárquico abaixo do republicano,
está em que, neste, último, a voz pública quase nunca eleva aos primeiros
postos homens que não sejam esclarecidos e capazes e não os ocupem com
dignidade; ao passo que, nas monarquias os que se elevam são, as mais das
vezes, pequenos rixentos, pequenos velhacos, pequeno intrigantes, cujos
pequenos engenhos, que permitem, nas cortes, alcançar os grandes postos, só
lhes servem para demonstrar ao público o quanto são ineptos, tão logo aí
consigam chegar. No tocante a essa escolha, o povo se engana bem menos que o
príncipe, de sorte que é quase tão raro encontrar um homem de real mérito no ministério
quanto um tolo à testa de um governo republicano. Quando acontece, por um
desses felizes acasos, que um desses homens nascidos para governar toma o timão
dos negócios, numa monarquia quase arruinada por esses acervos de belos
regentes, fica-se surpreso dos recursos por ele encontrados, e tal coisa faz
época no país.
Para
que um Estado monárquico possa ser bem governado, seria preciso que sua
grandeza ou extensão fosse mensurada conforme as faculdades de quem governa. É
mais fácil conquistar que administrar. Com uma alavanca adequada pode-se abalar
o mundo; mas, para o sustentar, são necessários os ombros de Hércules. Por
pequena que seja a grandeza de um Estado, o príncipe é sempre demasiado
pequeno. Quando, ao contrário, acontece de o Estado ser muito pequeno para o
porte de seu chefe, o que, de resto, é muito raro, é ainda assim mal governado,
porque o chefe, seguindo sempre a grandeza de seus alvos, esquece os interesses
dos povos, e não os faz menos infelizes, pelo abuso do excessivo talento, que
um chefe limitado, por carecer de talento. Seria preciso, por assim dizer, que
um reino se expandisse ou se restringisse, em cada reinado, de acordo com a
capacidade do príncipe; ao passo que os dotes de um senado, tendo medidas mais
fixas, podem impor ao Estado constantes limitações e não prejudicar a administração.
Tudo
concorre para privar de justiça e razão um homem elevado ao comando dos outros.
Cansa demais, segundo se diz, ensinar os jovens príncipes a reinar, e não me parece
que tal educação lhes seja proveitosa. Far-se-ia melhor começar por
ensinar-lhes a arte de obedecer. Os maiores reis, já celebrados na História,
não foram educados para reinar.
Mas,
se consoante Platão, o rei, por natureza, é um personagem tão raro, quantas
vezes concorrem a Natureza e a fortuna para o coroar? E se a educação real
corrompe necessariamente os que a recebem, que se deve esperar de uma seqüência
de homens distinguidos para reinar? É, portanto, querer iludir-se confundir o
governo real com o governo de um bom rei. Para ver o que é esse governo em si
mesmo, deve-se considerá-lo sob o mando de príncipes limitados ou perversos, pois
como tais chegarão ao trono ou o trono os tornará tais.
VII
– Dos governos mistos.
Governo
simples é melhor em si, pelo simples fato de ser simples. Entretanto, quando o
poder executivo pouco depende do legislativo, isto é, quando há mais relação entre
o príncipe e o soberano que entre o povo e o príncipe, é necessário remediar
essa falta de proporção dividindo o governo; porque, então, todas as suas
partes têm igual autoridade sobre os vassalos, e a divisão delas torna-as,
todas em conjunto, menos fortes contra o soberano.
VIII
– Nem toda forma de governo é apropriada a todos os países.
Em todos os governos do
mundo, a pessoa pública consome e nada produz. De onde lhe vem, pois, a substância
consumida? Do trabalho de seus membros. É o supérfluo dos particulares que
produz o necessário do público: segue-se daí que o estado civil só pode
subsistir enquanto o trabalho dos homens rende mais que as suas necessidades.
Ora,
esse excedente não é o mesmo em todos os países do mundo. Em inúmeros deles, é
considerável; em outros, medíocre, em outros ainda, nulo; em alguns, negativo.
Essa relação depende da fertilidade do clima, do tipo de trabalho exigido pelo
solo, da natureza de suas produções, da força de seus habitantes, da maior ou
menor consumição necessária, e de numerosas outras relações semelhantes das
quais são os países compostos.
Quanto
mais as contribuições públicas se distanciam de sua fonte, tanto mais se tornam
onerosas. Não é pela quantidade de imposições que se deve medir essa carga, mas
pelo caminho a ser feito por elas a fim de regressarem às mãos de que saíram.
Quando essa circulação é realizada e bem estabelecida, pague-se pouco ou muito,
o povo é sempre rico e as finanças caminham sempre a contento. Quando, ao
contrário, por pouco que contribua, esse pouco não retorna às suas mãos, em
contribuindo sempre o povo depressa se exaure; o Estado jamais será rico, e o povo
será sempre indigente.
Infere-se
daí que quanto mais aumenta a distância entre o povo e o governo, mais se
tornam onerosos os tributos. Assim sendo, na democracia, o povo é o menos
sobrecarregado; na aristocracia, ele o é um pouco mais; na monarquia, carrega o
maior peso. A monarquia, portanto, só convém às nações opulentas; a
aristocracia, aos Estados medíocres em riqueza, bem como em tamanho; a
democracia, aos Estados pequenos e pobres.
Eis,
portanto, em cada clima, causas naturais, que permitem indicar a forma de
governo a que a força do clima conduz, e mesmo dizer que espécie de habitantes
deve ele possuir. Os sítios ingratos e estéreis, onde o produto não compensa o
trabalho, devem permanecer incultos e desertos, ou povoados unicamente por
selvagens; os lugares em que o trabalho dos homens não produz senão o
necessário devem ser habitados pelos povos bárbaros, pois qualquer política aí
seria impossível; as regiões em que o excesso do produto sobre o trabalho é
medíocre convém aos povos livres; e aquelas, cujo solo fértil e abundante
fornece grande quantidade de produtos em troca de pouco trabalho, devem ser
governadas monarquicamente, para que o luxo do príncipe consuma o excesso do
supérfluo dos vassalos; porque mais convém seja esse excesso absorvido pelo
governo a ser dissipado pelos particulares. Há exceções, eu o sei; mas
justamente essas exceções confirmam a regra, nisso em que, cedo ou tarde,
produzem revoluções, as quais reconduzem as coisas à ordem natural.
A
todas essas diversas considerações posso acrescentar uma outra que delas
decorre e as fortifica: a de que os países quentes não necessitam de tantos
habitantes como os países frios, podendo alimentá-los por mais tempo, o que
produz um duplo supérfluo, sempre vantajoso para o despotismo. Quanto maior o número
de homens a ocupar uma grande superfície, mais difícil se tornam as revoltas,
porque não se as pode concertar nem pronta nem secretamente, sendo sempre fácil
ao governo descobrir os projetos e cortar as comunicações; mas, quanto mais um
povo numeroso se aproxima, menos pode o governo usurpar a soberania.
Com
a ajuda de pontos de apoio que a si mesmo se dá, sua força aumenta de longe
como a das alavancas (17). A do povo, ao contrário, só age quando concentrada.
Evapora-se e perde-se esta, se se estender, como o efeito da pólvora espalhada
por terra, que só pega fogo grânulo por grânulo. Os países menos povoados são
assim os mais apropriados à tirania, os animais ferozes imperam somente nos
desertos.
IX
– Dos sinais de um bom governo.
Entretanto,
de nenhum modo a resolvemos, porque cada qual deseja resolvê-la à sua maneira.
Os vassalos elogiam a tranqüilidade pública, os cidadãos a liberdade dos
particulares; um prefere a segurança das possessões, e outro a das pessoas; um
pretende que o melhor governo é o mais severo, outro sustenta que é o mais
brando; este quer que se punam os crimes, e aquele que se os previnam; um é de
opinião que se deve ser temido dos vizinhos, outro prefere ser ignorado; um
mostra-se contente quando o dinheiro circula, outro exige que o povo tenha pão.
E mesmo no caso de se obter entendimento sobre esses e outros pontos
semelhantes, ter-se-ia avançado mais? Faltando a medida precisa às quantidades
morais, embora se concorde quanto ao sinal, como fazê-lo no tocante ao
julgamento?
Qual
é o objetivo da associação política? É a conservação e a prosperidade de seus
membros. E qual é o mais seguro sinal de que eles se conservam e prosperam? É o
seu número e a sua população. Não busqueis, portanto, alhures esse sinal tão disputado.
Sendo todas as coisas semelhantes, o governo sob o qual, sem meios estranhos,
sem naturalização, sem colônias, os cidadãos habitam e se multiplicam por mais
tempos é infalivelmente o melhor; aquele sob o qual um povo diminui e perece, é
o pior.
X
– Do abuso do governo e de sua tendência a degenerar.
Assim
como a vontade particular atua continuamente contra a vontade geral, assim se
esforça incessantemente o governo contra a soberania. Quanto mais aumenta esse
esforço, mais se altera a constituição, e como não há aqui outra vontade de
corpo que, resistindo à vontade do príncipe, faça equilíbrio com ela, deve
acontecer cedo ou tarde venha o príncipe oprimir enfim o soberano e romper o tratado
social. Está aí o vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo
político, tende sem afrouxamento a destruí-lo, assim como a velhice e a morte
destroem por fim o corpo do homem.
O
caso da dissolução do Estado pode-se dar de duas maneiras: primeiramente,
quando o príncipe não mais o administra conforme as leis, e usurpa o poder
soberano. Então, acontece uma mudança considerável: é que, não mais o governo,
mas o Estado se restringe. Quero dizer que o grande Estado se dissolve, e que
se forma um outro no seio daquele, apenas composto dos membros do governo, e
que nada mais é em relação ao resto do povo senão o senhor e o tirano. De sorte
que, no instante da usurpação da soberania por parte do governo, é rompido o
pacto social, e todos os simples cidadãos, recolados de direito em sua
liberdade natural, são forçados, mas não obrigados a obedecer.
Quando
o Estado se dissolve, seja qual for o abuso do governo, toma o nome de
anarquia. Fazendo a distinção: a democracia degenera em ociocracia, a
aristocracia em oligarquia: Posso ainda acrescentar que a realeza degenera em
tirania; mas este último termo é equívoco e exige explicação.
No
sentido vulgar do termo, o tirano é um rei que governa com violência e sem
respeito à justiça e às leis. No sentido preciso, um tirano é um particular que
se arroga a autoridade real sem a ela ter direito. É assim que os gregos
entendiam o termo tirano: davam-no indiferentemente aos bons ou maus príncipes cuja
autoridade não era legítima (20). Assim sendo, tirano e usurpador são dois
termos perfeitamente sinônimos.
Para
dar diferentes nomes a diferentes coisas, chamo tirano ao usurpador da
autoridade real, e déspota ao usurpador do poder soberano. O tirano é aquele
que se decide contra as leis a governar segundo as leis; o déspota é o que se
põe acima das leis. Assim, o tirano pode não ser déspota, mas o déspota é
sempre tirano.
XI
– Da morte do corpo político.
O
princípio da vida política está na autoridade soberana. O poder legislativo é o
coração do Estado; o poder executivo é o cérebro que põe em movimento todas as
partes. O cérebro pode ser atingido pela paralisia e o indivíduo continuar a
viver ainda. O homem torna-se imbecil e vive ainda; mas tão logo o coração
deixe de funcionar, o animal perece. Não é em virtude das leis que o Estado
subsiste, mas devido ao poder legislativo. A lei de ontem não obriga o dia de
hoje; mas o consentimento tácito é presumido do silêncio, e o soberano confirma
implicitamente as leis que não revoga, podendo fazê-lo. Tudo quanto declarou
desejar uma vez, ele o deseja sempre, a menos que o invalide.
XII
– Como se mantém a autoridade soberana.
Pelo
que foi feito consideremos o que se pode fazer. Não falarei das antigas
repúblicas gregas; mas a República romana, parece-me, era um grande Estado, e a
cidade de Roma uma grande cidade. O último recenseamento deu a Roma
quatrocentos mil cidadãos em armas, e o último censo do Império enumerou mais
de quatro milhões de cidadãos, sem contar os vassalos, os estrangeiros, as mulheres,
as crianças, e os escravos.
XIII
– Continuação.
No
instante em que o povo está legitimamente reunido em corpo soberano, cessa toda
e qualquer jurisdição do governo, o poder executivo fica suspenso, e a pessoa
do último dos cidadãos é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro
magistrado, porque onde se encontra o representado deixa de haver o representante.
A maioria dos tumultos ocorridos em Roma, durante os comícios, originou-se de
se haver ignorado ou negligenciado essa regra. Os cônsules não eram então senão
os presidentes do povo; os tribunos, simples oradores (21); o senado não era
coisa alguma.
XV
– Dos deputados ou representantes.
Numa
cidade, bem dirigida, todos votam nas assembléias; sob um mau governo, ninguém
aprecia dar um passo para isso fazer, porque ninguém se toma de interesse pelo
que se faz, prevendo que a vontade geral não prevalecerá, e porque, enfim, os cuidados
particulares tudo absorvem. As boas leis permitem que se façam outras melhores;
as más conduzem às piores. Tão logo diga alguém, referindo-se aos assuntos do
Estado, que me importo? pode-se ter a certeza de que o Estado está perdido.
A
soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser
alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade de modo
algum se representa; ou é a mesma ou é outra; não há nisso meio termo. Os
deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são quando
muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente. São nulas todas
as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis.
Só
se mantém a liberdade graças ao apoio da servidão? Talvez. Os dois excessos se
tocam. Tudo que não se contém nos limites da Natureza tem os seus inconvenientes,
e a sociedade civil mais que tudo o resto. Há tais posições infelizes nas quais
é impossível conservar a liberdade, a não ser às expensas da de outrem, e em
que o cidadão só pode ser perfeitamente livre, se o escravo for perfeitamente
escravo: era assim a condição de Esparta. Quanto a vós, povos modernos, não possuís
escravos, porém o sois; e pagais a liberdade deles sacrificando a vossa. Vós
vos vangloriais dessa preferência, mas eu vejo nisso mais covardia que
humanidade.
XVI
– Quando a instituição do governo não é um contrato.
Sendo
os cidadãos todos iguais em virtude do contrato social, todos podem prescrever
o que todos devem fazer, ao passo que ninguém tem o direito de exigir que outro
faça aquilo que ele mesmo não faz. Ora, é esse direito propriamente,
indispensável para fazer viver e mover o corpo político, que o soberano outorga
ao príncipe ao instituir o governo.
Só
há um contrato no Estado: é o da associação, que exclui qualquer outro. Não
seria possível imaginar nenhum contrato público que não constituísse uma
violação do primeiro.
XVII
– Da instituição do governo.
Essa
mudança de relação não representa uma sutileza de especulação, desprovida de
exemplo na prática; tem lugar todos os dias no Parlamento da Inglaterra, onde a
Câmara baixa, em certas ocasiões, se reúne com todo o corpo político, para
melhor discutir os negócios, e, de corte soberana, que era no instante precedente,
se torna simples comissão, a qual em seguida, faz a si mesma o relatório, como
Câmara dos Comuns, do que vem de ajustar na qualidade de comissão, e delibera
novamente, sob um título, a respeito do que já decidiu sob outro.
XVIII
– Meios de prevenir as usurpações do governo.
Malgrado
a oposição do povo, sem que se possa dizer que ele o tenha usurpado; porque,
parecendo fazer apenas uso de seus direitos, é muito fácil para ele estender
esses direitos, e impedir, sob o pretexto de tranqüilidade pública, as
assembleias destinadas a restabelecer a boa ordem, de forma a prevalecer-se de
um silêncio, que ele mesmo não permite se rompa, ou das irregularidades que faz
cometer a fim de mudar em seu favor a opinião dos que se calam por receio e
punir os que ousam falar. É assim que os decênviros, eleitos de início por um
ano, com mandato em seguida prorrogado por mais um ano, tentaram manter
perpetuamente seu poder, não permitindo que o povo se reunisse em comícios; e é
também por esse meio fácil que todos os governos do mundo, uma vez revestidos
da força do público, usurpam cedo ou tarde a autoridade soberana.
Suponho
nesta altura haver já demonstrado que não existe no Estado nenhuma lei fundamental
que não possa ser revogada, nem mesmo o pacto social; porque, se todos os
cidadãos se reunissem com o fim de romper esse pacto, ninguém poderia duvidar
de que tal rompimento não fosse legítimo. Grotius chega mesmo a pensar que cada
qual tem o direito de renunciar ao Estado de que é membro e retomar sua
liberdade natural e seus bens, retirando-se do país (24). Ora, seria absurdo
não poderem decidir os cidadãos reunidos o que pode cada um deles
separadamente.
LIVRO
IV
I
– A vontade geral é indestrutível.
Os
homens retos e simples são difíceis de enganar, justamente em virtude de sua
simplicidade; os engodos, os pretextos refinados, não se impõem a eles, que, de
resto, não são assaz sutis para serem tolos. Quando vemos, entre o povo mais
feliz do mundo, grupos de camponeses regularizarem, à sombra de um carvalho, os
negócios do Estado, e se conduzirem sempre com sabedoria, podemos evitar o menosprezo
dos refinamentos das outras nações, que se tornam ilustres e desdenhadas com
tantos artifícios e mistérios?
Um
Estado assim governado necessita de bem poucas leis; à medida que se torne
necessário promulgar outras novas, todos percebem tal necessidade. O primeiro
que as propõe não faz senão dizer o que todos já sentiram, e não haverá
problemas de disputas nem de eloqüência para transformar em lei o que cada qual,
individualmente, já tinha resolvido fazer, certo de que os demais o farão como
ele.
O
crime que comete está em mudar o estado do problema e em responder outra coisa
que não a que se lhe pergunta; de sorte que, ao invés de dizer, no concernente
ao seu sufrágio, é vantajoso ao Estado, diz: é vantajoso a tal homem, a tal
partido, ou a que seja aprovada esta ou aquela opinião. Assim sendo, a lei da
ordem pública nas assembléias não consiste quase em manter a vontade geral, mas
em fazer com que esta seja interrogada e que sempre responda.
Eu
teria nesta altura muitas reflexões a fazer sobre o simples direito de votar em
todo ato de soberania, direito que ninguém pode subtrair ao cidadão, e sobre o
direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o governo, com
grande cuidado, sempre procura reservar apenas a seus membros; mas esta importante
matéria demandaria um tratado à parte, e eu neste não posso dizer tudo.
II
– Dos sufrágios.
Quanto
maior a harmonia reinante nas assembléias, isto é, quanto mais as opiniões se
aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade geral se revela dominante; já os
longos debates, as dissensões, o tumulto, anunciam o ascenso dos interesses
particulares e o declínio do Estado.
Era
esta a vil maneira de opinar do senado sob o governo dos imperadores. Isso
fazia-se por vezes com precauções ridículas. Observa Tácito que, reinando Otão,
os senadores, cumulando Vitélio de execrações, promoviam um ensurdecedor
tumulto, a fim de que, se por acaso este viesse a se tornar o senhor, não
pudesse saber o que cada um deles tinha dito.
Não
há senão uma lei que, por sua natureza, exige um consentimento unânime: é o
pacto social; porque a associação civil é o mais voluntário de todos os atos do
mundo; uma vez que todo homem nasceu livre e senhor de si mesmo, não há quem
possa, sob qualquer pretexto, sujeitá-lo, sem sua permissão. Decidir que o
filho de um escravo nasce escravo é decidir que ele não nasce homem.
De
minha parte respondo que a questão está mal colocada. O cidadão consente todas
as leis, mesmo as que são aprovadas sem o seu consentimento, inclusive as pelas
quais o punem quando ele ousa infringi-las. A vontade constante de todos os
membros do Estado constitui a vontade geral; devido a ela é que se tornam eles
cidadãos e livres (26).
Quando
uma lei é proposta na assembléia do povo, o que se lhe pergunta não é
precisamente se todos aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas sim se está ou
não conforme à vontade geral, que é a deles. Cada qual, dando o seu voto,
profere seu parecer, e do cálculo dos votos extrai-se a declaração da vontade
geral. Portanto, quando vence a opinião contrária à minha, tal coisa apenas
prova que eu me enganei, e que aquilo que eu imaginava ser a vontade geral não
o era. Se o meu particular modo de ver prevalecesse, eu teria feito o que não
desejava, e então eu não teria sido livre.
A
diferença de um único voto rompe a igualdade; um único opositor quebra a
unanimidade; mas, entre a unanimidade e a igualdade, há inúmeras divisões
desiguais, podendo-se a cada uma delas fixar esse número, segundo a situação e
as necessidades do corpo político.
III
– Das eleições.
A
respeito das eleições do príncipe e dos magistrados, que constituem, como já
disse, atos complexos, há dois caminhos para os proceder, os seguintes: a
escolha e a sorte.
Em
toda verdadeira democracia, a magistratura não constitui um proveito, mas sim
uma carga onerosa que se pode impor a um particular de preferência a outro.
Somente a lei pode impor tal carga àquele a quem a sorte escolherá; porque
então, sendo igual para todos a condição, e não dependendo a escolha de nenhuma
vontade humana, não há qualquer aplicação particular que altere a
universalidade da lei.
As
eleições por sorteio teriam poucos inconvenientes numa verdadeira democracia,
onde, sendo todos iguais em costumes, dotes intelectuais, preceitos e fortuna,
a escolha se tornaria quase indiferente. Mas, como afirmei, não existe
verdadeira democracia.
Quando
a escolha e o sorteio se mesclam, cabe à primeira preencher os postos que
demandam dotes apropriados, tais como os cargos militares; o segundo convém aos
postos aos quais bastam o bom senso, a justiça, a integridade, tais como os
cargos de judicatura, porque, num Estado bem constituído, essas qualidades são
comuns a todos os cidadãos.
O
sorteio e o sufrágio não têm nenhum lugar num governo monárquico. O monarca é
de direito único, príncipe e magistrado único; a escolha de seus auxiliares só
a ele compete.
IV
– Dos comícios romanos.
Os
usos estabelecidos atestam ao menos ter havido uma origem para eles. As
tradições que remontam a essas origens, nas quais se apoiam as maiores
autoridades, confirmadas que são pelas mais fortes razões, devem ser aceitas
como as mais certas.
Após
a fundação de Roma a república nascente, isto é, o exército do fundador,
composto de albaneses, sabinos e estrangeiros, foi dividido em três classes,
que dessa divisão tomaram o nome de tribos. Cada uma dessas tribos foi
subdividida em dez cúrias, e cada cúria em decúrias, à testa das quais foram
postos chefes denominados curiões e decuriões.
Além
disso, tirou-se de cada tribo um corpo de dez cavaleiros ou cavalheiros,
chamado centúria; por onde se vê que essas divisões, pouco necessárias num
burgo, não eram de início senão militares. Parece, porém, que um instinto de
grandeza levava a pequena cidade de Roma a dar-se por antecipação uma organização
civil adequada à capital do mundo.
O
remédio que Servius encontrou para esse perigoso abuso foi mudar a divisão, e,
a das raças, que aboliu, foi substituída por outra, tirada dos lugares da
cidade ocupados por cada tribo. Ao invés de três, organizou quatro tribos, cada
uma das quais ocupando uma das colinas de Roma cujos nomes adotaram. Assim,
remediando a desigualdade existente, ele a preveniu para o futuro, e a fim de
que essa divisão não fosse apenas de lugares, mas de homens, proibiu Servius
que os habitantes de um quartel se transferissem para outro, o que impediu de
as raças se confundirem. Além disso, como os grandes e poderosos se faziam escrever
nas tribos do campo, e os libertos, tornados cidadãos, permaneciam com o
populacho nas da cidade, as tribos, em geral, deixaram de possuir seus sítios e
territórios e acabaram todas por mesclar-se de tal modo que se fez impossível discernir
os membros de cada uma em particular, a não ser pelos registros. Destarte a palavra
tribo passou do real ao pessoal, ou então veio a tornar-se quase uma quimera.
Servius
criou ainda uma terceira divisão, que não tinha nenhuma relação com as duas
precedentes e que se transformou, por seus efeitos, na mais importante de
todas. Ele distribuiu todo o povo romano em seis classes, as quais não se
distinguiam pelo lugar ou pelos homens, mas pelos bens que possuíam; de maneira
que as primeiras classes eram preenchidas pelos ricos, as últimas pelos pobres,
e as médias pelos que desfrutavam de medíocre fortuna. Essas seis classes eram
subdivididas em cento e noventa e três outros corpos, chamados centúrias, e
estes, por sua vez, eram distribuídos de tal forma que a primeira classe
compreendia, sozinha, mais da metade e a última formava apenas uma só. Ocorria
então que a classe menos numerosa em quantidade de homens era maior em
centúrias, e toda a última classe não era contada senão como uma subdivisão,
muito embora abrangesse, ela só, mais de metade dos habitantes de Roma.
Onde
se encontra o povo moderno no seio do qual a devoradora avidez, o espírito
inquieto, a intriga, os contínuos deslocamentos, as perpétuas revoluções da
fortuna, permitem durar vinte anos semelhante estado de coisas, sem que haja
uma subversão do Estado inteiro? É necessário, inclusive, assinalar que os
costumes e a censura, mais fortes que essa instituição, corrigiram o vício em
Roma, e que alguns ricos se viram relegados à classe dos pobres por haverem
ostentado exageradamente sua riqueza.
Vejamos
agora o efeito produzido nas assembléias. Essas assembléias, legitimamente
convocadas, denominavam-se comices. Realizavam-se ordinariamente na praça de
Roma ou no Campo de Marte, e se distinguiam por comícios por cúrias, comícios
por centúrias e comícios por tribos, segundo as três formas pelas quais eram
convocados. Os comícios por cúrias eram da instituição de Rômulo; os por
centúrias, de Servius; os comícios por tribos, dos tribunos do povo. Nenhuma
lei recebia a sanção, nenhum magistrado era eleito, a não ser nos comícios; e
como não houvesse nenhum cidadão que não fosse inscrito numa cúria, numa centúria
ou numa tribo, segue-se que nenhum cidadão era excluído do direito do sufrágio
e que o povo de Roma era verdadeiramente soberano de direito e de fato.
A
fim de se fazer o julgamento dessas diversas formas, é o bastante compará-las.
Rômulo, instituindo as cúrias, tinha em vista conter o senado pelo povo e o
povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Deu ele, pois, ao povo, por
essa forma, a inteira autoridade do número para contrabalançar a do poder e a
das riquezas, deixadas aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia,
deixou ele maiores vantagens aos patrícios, devido à influência de seus
clientes sobre a pluralidade dos sufrágios. Essa admirável instituição de
patronos e clientes foi uma obra-prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado,
tão contrário ao espírito de república, não teria podido subsistir. Roma foi a
única a ter a honra de fornecer ao mundo esse belo exemplo, do qual jamais
resultou qualquer abuso, e que não foi, portanto, imitado nunca.
Contudo,
essa extrema autoridade era temperada por duas maneiras. Primeiramente, sendo
grande número de plebeus da classe dos ricos, os tribunos, de ordinário,
contrabalançavam o crédito dos patrícios nessa primeira classe. A segunda
maneira consistia em que, ao invés de fazerem, de início, com que as centúrias
votassem segundo sua ordem, o que significaria começar sempre pela primeira,
determinava-se um sorteio, e a escolhida procedia sozinha à eleição (33), após
o que todas as centúrias, chamadas num outro dia segundo sua categoria,
repetiam a mesma eleição e geralmente a confirmavam. Subtraia-se assim a autoridade
do exemplo à graduação para a entregar à sorte, conforme o princípio da democracia.
Sem
entrar em mais longos pormenores, resulta dos esclarecimentos precedentes que
os comícios por tribos eram os mais favoráveis ao governo popular, e os
comícios por centúrias aos interesses da aristocracia. A respeito dos comícios
por cúrias, nos quais a plebe de Roma constituía a pluralidade, como apenas
servissem para favorecer a tirania e os maus desígnios, acabaram por cair no
descrédito, fazendo com que os próprios elementos sediciosos se abstivessem de empregar
um meio que lhes punha muito a descoberto seus projetos. Toda a majestade do
povo romano – está fora de dúvida – revelava-se nos comícios por centúrias, os
únicos completos, levando-se em conta que, nos comícios por cúrias faltavam as
tribos rústicas, e nos comícios por tribos eram excluídos o senado e os
patrícios.
Quanto
à maneira de recolher os sufrágios, era o fato, entre os primeiros romanos,
coisa tão simples como seus costumes, malgrado não fosse tão simples quanto o
era em Esparta. Cada qual votava em voz alta, e um escrivão o anotava;
pluralidade de votos em cada tribo determinava o sufrágio do povo, e o mesmo
sucedia nas cúrias e centúrias. Este hábito era bom, tanto assim que reinava a
honestidade entre os cidadãos, e cada qual tinha vergonha de oferecer
publicamente seu voto a uma decisão injusta ou a um assunto indigno;
entretanto, quando o povo veio a corromper-se e os votos passaram a ser
negociados, convencionou-se que o sufrágio se tornasse secreto a fim de conter pela
suspeita os compradores, e fornecer aos velhacos o meio de não se tornarem
traidores.
Sei
que Cícero censura essa mudança e lhe atribui em parte a ruína da república.
Mas, embora eu sinta o peso que deve ter aqui a autoridade de Cícero, não posso
concordar com sua opinião. Penso, ao contrário, que pelo fato de não ter havido
em maior quantidade semelhantes mudanças é que foi acelerada a perda do Estado.
Como o regime das pessoas saudáveis não é conveniente aos enfermos, não se deve
querer governar um povo corrompido através das mesmas leis apropriadas a um
povo honesto. Nada comprova melhor esta máxima que a duração da República de
Veneza, cujo simulacro ainda existe, unicamente porque suas leis não convêm
senão a homens corruptos.
V
– Do tribunato.
Esse
corpo, que eu denominarei tribunato, é o conservador das leis do poder
legislativo, e serve, por vezes, para proteger o soberano contra o governo,
como faziam em Roma os tribunos do povo; como faz presentemente em Veneza o
Conselho dos Dez, para sustentar o governo contra as investidas do povo; e, algumas
vezes, para manter o equilíbrio entre ambas as partes, como o faziam os éforos
em Esparta.
O
tribunato não constitui uma parte constitutiva da cidade, e não deve possuir a
menor porção do poder legislativo nem do executivo; mas é justamente nisso que
seu poder se torna grande, porque, nada podendo fazer, tudo pode impedir.
O
tribunato degenera em tirania quando usurpa o poder executivo, do qual não
passa de moderador, e quando deseja dispensar as leis cuja proteção lhe
compete. O enorme poder dos éforos, que não ofereceu perigo enquanto Esparta
conservou seus costumes, acelerou a corrupção iniciada. O sangue de Agis,
degolado por esses tiranos, foi vingado por seu sucessor; o crime e o castigo
dos éforos apressaram igualmente a ruína da república; e, após Cleômenes,
Esparta deixou de ter qualquer importância. Roma pereceu ainda pela mesma via,
e o excessivo poder dos tribunos, usurpado gradualmente, serviu, enfim, com a
ajuda das leis votadas para garantirem a liberdade, de salvaguarda aos
imperadores que a destruíram. Quanto ao Conselho dos Dez, em Veneza, trata-se
de um tribunal de sangue, horrível a um tempo aos patrícios e ao povo, e que,
longe de proteger altamente as leis, apenas serve, depois de seu aviltamento,
para aplicar nas trevas golpes que se não ousam imaginar.
VI
– Da ditadura.
Se
é tal o perigo, que o aparelho das leis passa a constituir um obstáculo à sua garantia,
nomeia-se então um chefe supremo que faça emudecer todas as leis e suspenda um
momento a autoridade soberana. Em semelhante caso, a vontade geral não é posta em,
dúvida, e torna-se evidente que a primeira intenção do povo consiste em que o
Estado não venha a perecer. Dessa maneira, a suspensão de autoridade
legislativa não significa esteja a mesma abolida: o magistrado que a silencia
não pode fazê-la falar; ele a domina, sem que a possa representar; tudo pode
fazer, exceto legislar.
Por
volta do fim da república, os romanos, tornados circunspectos, economizaram a
ditadura com a mesma irracionalidade com que a tinham prodigalizado
anteriormente. Era fácil ver que seu receio estava mal fundamentado: que a
fraqueza da Capital constituía então sua segurança contra os magistrados abrigados
em seu seio; que um ditador, em determinado caso, podia defender a liberdade
pública, sem jamais atentar contra ela; e que os grilhões de Roma de modo algum
seriam forjados na própria Roma, mas em seus exércitos. A pequena resistência
de Mário frente a Sila, e de Pompeu frente a César, demonstrou perfeitamente o
que se podia esperar da autoridade de dentro contra a força vinda de fora
De
resto, independente da maneira pela qual essa importante comissão possa ser
conferida, importa fixar-lhe a duração dentro de um prazo bastante curto e que
não deva jamais ser prolongado: no decorrer das crises que o fazem estabelecer,
o Estado é logo salvo ou destruído, e, passada a necessidade premente, a
ditadura toma-se tirânica ou inútil. Em Roma, os ditadores, nomeados apenas por
seis meses, em sua maioria, abdicaram antes de atingido esse termo. Se o prazo
tivesse sido mais longo, é possível que houvessem tentado prolongá-lo ainda
mais, como o fizeram os decênviros com o prazo de um ano. O ditador apenas
dispunha do tempo de prover a necessidade pela qual fora eleito; não lhe
sobrava tempo para sonhar com outros projetos.
VII
– Da censura.
É
inútil distinguir os costumes de uma nação dos objetos de sua estima, porque
tudo se contém no mesmo princípio e se confunde necessariamente. Entre todos os
povos do mundo, não é a natureza, mas a
opinião
que decide da escolha de seus prazeres. Reparai as opiniões dos homens, e seus
costumes se apurarão por si mesmos. Amamos sempre o belo ou que consideramos tal;
mas é justamente a propósito deste julgamento que nos enganamos: portanto, é
este julgamento que deve ser ordenado. Quem julga os costumes julga a honra, e
quem julga a honra faz sua lei da opinião.
Segue-se
daí que a censura pode ser útil à conservação dos costumes, não porém para os
restabelecer. Colocai censores durante a vigência das leis; tão logo estejam estas
perdidas, tudo descamba no desespero: nada de legítimo conserva sua força,
quando as leis deixam de existir.
uso
de segundos nos duelos, levado até o furor no reino de França, foi aí abolido
pelas seguintes palavras de edito real: “Quanto aos que têm a covardia de
chamar segundos...” Tal julgamento, prevenindo o do público, decidiu-o de
repente. Contudo, quando os mesmos editos desejaram pronunciar que era igualmente
covardia o bater-se em duelo – o que de resto é verdade, mas contraria a
opinião comum – o público zombou dessa decisão sobre a qual já havia
estabelecido o julgamento.
VIII
– Da religião civil.
Dois
povos estranhos um ao outro, e quase sempre inimigos, não puderam, durante
longo tempo, reconhecer um senhor comum; dois exércitos empenhados em combate não
saberiam obedecer ao mesmo chefe. Assim, das divisões nacionais originou-se o
politeísmo, e do politeísmo a intolerância teológica e civil
Se
me perguntarem por que, no paganismo, onde cada Estado possuía seu culto e seus
deuses, não havia guerras religiosas, eu responderei que era justamente por
isso, porque, tendo cada Estado seu próprio culto, identificado com seu próprio
governo, não distinguia seus deuses de suas leis.
Mas
quando os judeus, submetidos aos reis da Babilônia, e, em seguida aos reis da
Síria, quiseram obstinar-se em não reconhecer nenhum outro deus que não o próprio,
tal recusa, olhada como uma rebelião contra o vencedor, provocou as
perseguições lidas em sua história, e das quais não se conhecem outros exemplos
antes do cristianismo (38).
Os
romanos, antes de tomarem uma praça, intimavam os deuses locais a abandoná-la;
e quando deixavam aos tarentinos seus deuses irritados, faziam-no porque olhavam
então esses deuses como submetidos aos deles romanos, forçados aqueles a prestar
homenagens a estes. Permitiam que os vencidos conservassem os seus deuses, assim
como lhes permitiam reger-se por suas próprias leis. Em geral, uma coroa ao
Júpiter do Capitólio era o único tributo imposto aos vencidos.
Foi
nessas circunstâncias que Jesus surgiu para estabelecer na Terra um reino
espiritual; o que, separando o sistema teológico do sistema político, fez com
que o Estado cessasse de ser uno, causando as divisões intestinas que jamais
deixaram de agitar os povos cristãos. Ora, essa idéia nova de um reino do outro
mundo nunca pode entrar na cabeça dos pagãos; estes sempre olharam os cristãos
como verdadeiros rebeldes, que, sob a aparência de uma falsa submissão, só
esperavam pelo instante de se tomarem independentes e senhores, usurpando diretamente
a autoridade que fingiam respeitar em sua debilidade. E foi essa a causa das
perseguições.
O
que os pagãos receavam chegou. Então, tudo mudou de face. Os humildes cristãos
mudaram de linguagem, e cedo se viu o pretendido mundo espiritual transformar-se,
sob a direção de um chefe visível, no mais violento despotismo neste mesmo
mundo.
Não
obstante, inúmeros povos, mesmo na Europa ou em suas cercanias, quiseram
conservar ou restabelecer o antigo sistema, porém sem lograr êxito; o espírito
do cristianismo a tudo venceu. O culto sagrado sempre permaneceu ou veio a
tornar-se independente do soberano, e sem ligação necessária com o corpo do
Estado. Maomé teve intenções muito sensatas; soube ligar bem seu sistema
político, e enquanto a forma de seu governo subsistiu, sob os califas, seus
sucessores, tal governo foi exatamente uno e bom nesse sentido. Mas os árabes,
vindo a florescer, letrados, polidos, lassos e poltrões, foram subjugados pelos
bárbaros; então recomeçou a divisão entre os dois poderes; muito embora seja
menos aparente entre os maometanos que entre os cristãos, ela existe, sobretudo
na seita de Ali. Há Estados, como a Pérsia, em que isso se faz sentir
continuamente.
O
filósofo Hobbes é, de todos os autores cristãos, o único que viu perfeitamente
o mal e o remédio, e ousou propor a junção das duas cabeças da águia, criando a
unidade política, sem a qual o Estado e o governo jamais serão bem
constituídos; contudo, Hobbes deve ter visto que o espírito dominador do cristianismo
era incompatível com seu sistema, e que o interesse do sacerdote seria sempre
mais forte que o interesse do Estado. Não é tanto o que há de horrível e falso
em sua política, como o que há de justo e verdadeiro, que a tomou odiosa.
Provar-se-ia
ao primeiro não ter havido Estado a que a religião não tenha servido de base, e
ao segundo, que a lei cristã é, no fundo, mais prejudicial que útil à forte
constituição do Estado
A
religião, considerada em relação à sociedade, que é geral ou particular pode
também dividir-se em duas espécies, a saber: a religião do homem, e a do
cidadão. A primeira, desprovida de templos, altares, ritos, limitada unicamente
ao culto interior do Deus supremo e aos eternos deveres da moral, é a pura e simples
religião dos Evangelhos, o verdadeiro teísmo, é o que se pode denominar de
direito divino natural. A segunda, alicerçada num único país, fornece-lhe os
deuses, os patronos próprios e tutelares; possui seus dogmas, seus rituais, seu
culto exterior prescrito por leis; afora a única nação que a cultua, as demais
são consideradas infiéis, estrangeiras, bárbaras; é uma religião que não
estende os deveres e os direitos do homem além de seus altares. Foram assim
todas as religiões dos primeiros povos, às quais se pode dar a denominação de
direito divino civil ou positivo.
Há
um terceiro tipo de religião, mais bizarro, que, dando aos homens duas
legislações, dois chefes, duas pátrias, os submete a deveres contraditórios e
os impede de ser a um só tempo devotos e cidadãos. Assim é a religião dos
lamas, a dos japoneses, e a do cristianismo romano. Esta última pode ser
chamada a religião dos padres. Dela resulta uma espécie de direito misto e
insociável inominado.
A
segunda é boa naquilo em que reúne o culto divino e o amor das leis, e em que,
fazendo da pátria o objeto da adoração dos cidadãos, ensina-os que servir o
Estado é servir o deus tutelar. E uma espécie de teocracia, em que não se deve
ter outro pontífice além do príncipe, nem outros sacerdotes senão os magistrados.
Então, morrer por seu país é atingir o martírio, violar as leis é ser ímpio; e
submeter um culpado à execração pública é sacrificá-lo à ira dos deuses: sacer
esto.
Mas
ela é má, porque, estando alicerçada sobre o erro e a mentira, engana os
homens, torna-os crédulos, supersticiosos, e asfixia o verdadeiro culto da
divindade num vão cerimonial. Ela ainda é má, quando, vindo a tornar-se
exclusiva e tirânica, leva um povo a fazer-se sanguinário e intolerante, de
sorte a que apenas respire assassínios e massacres, e creia cometer uma ação
sagrada ao matar quem não admita os seus deuses. Tal espécie de religião coloca
tal povo em estado natural de guerra contra todos os outros, o que é bastante
prejudicial à sua própria segurança. Resta, pois, a religião do homem ou o
cristianismo, não o de nossos dias, mas o dos Evangelhos, que é de todo
diferente. Por essa religião sagrada, sublime, verdadeira, os homens, filhos do
mesmo Deus, se reconhecem todos como irmãos, e a sociedade que os une não se
dissolve, nem na morte. Mas esta religião, não tendo nenhuma relação particular
com o corpo político, deixa entregue às leis a única força que de si mesmas
tiram, sem lhes acrescentar nenhuma outra; e, devido a isso, um dos grandes
laços da sociedade particular fica sem efeito. Ainda mais, ao invés de unir os
corações dos cidadãos ao Estado, ela os afasta, como, aliás, de todas as coisas
terrenas. De minha parte, nada conheço mais contrário ao espírito social. Costuma-se
dizer que um povo constituído de verdadeiros cristãos formaria a sociedade mais
perfeita que se pode imaginar. Eu não vejo nessa suposição senão uma grande
dificuldade: é que uma sociedade de verdadeiros cristãos já não seria uma
sociedade de homens.
Para
que a sociedade fosse tranqüila e se mantivesse a harmonia, seria preciso que
todos os cidadãos, sem exceção, se revelassem igualmente bons cristãos; porém,
se por desgraça, houver entre eles um único ambicioso, um único hipócrita, um
Catilina, por exemplo, um Cromwell, este fará de seus piedosos compatriotas o
que bem entender. A caridade cristã não permite se pense facilmente mal do
próximo. Desde que tal indivíduo, graças a qualquer ardil, haja encontrado um
jeito de se impor a eles e apoderar-se de uma parte da autoridade pública,
ei-lo revestido de dignidade: Deus deseja que se o respeite. Em breve torna-se
um poder: Deus quer que se lhe obedeça. O depositário desse poder talvez abuse
dele: e isto é a vara com que Deus castiga os próprios filhos. Se a consciência
aconselha rechaçar o usurpador, faz-se preciso perturbar a tranqüilidade pública,
usar de violência, derramar sangue, e tudo isso não se harmoniza com a doçura
do cristão; e, finalmente, que importa ser escravo ou livre neste vale de
misérias? O essencial é atingir o paraíso, e a resignação não é senão um meio
de chegar a ele.
Engano-me,
porém, quando me refiro a uma república cristã: ambos os termos se excluem. O cristianismo
prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à
tirania, para que esta se não sirva com freqüência dele. Os verdadeiros
cristãos são feitos para escravos; e eles o sabem e em hipótese nenhuma se
amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus olhos.
Sob
os imperadores pagãos, os soldados cristãos eram valentes; todos os autores
cristãos o asseguram, e eu o creio: tratava-se de uma emulação de honra contra
as tropas pagãs. Assim que os imperadores se tornaram cristãos, essa emulação
deixou de existir; e quando a cruz expulsou a águia, toda a coragem romana
desapareceu.
Ora,
é conveniente ao Estado que cada cidadão possua uma religião que o faça amar os
seus deveres; todavia, os dogmas dessa religião só interessam ao Estado e a
seus membros enquanto se relacionam com a moral e os deveres que aquele que a
professa é forçado a cumprir para com outrem. Cada qual pode ter, de resto, as
opiniões que desejar, sem que interesse ao soberano conhecê-las; porque, não
tendo ele competência no tocante ao outro mundo, não é de seu arbítrio
preocupar-se com a sorte dos vassalos na vida futura, desde que sejam bons
cidadãos na vida terrena.
Na
minha opinião, enganam-se os que distinguem a intolerância civil da
intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível
viver em paz com gente que se crê danada; amá-la seria odiar a Deus que a
castiga; é absolutamente necessário convertê-la ou puni-la. Onde quer que a intolerância
teológica seja admitida, toma-se impossível não haja algum efeito civil; e tão
logo este apareça deixa o soberano de ser soberano, mesmo em relação ao poder
temporal a partir de então, os sacerdotes passam a ser os verdadeiros senhores,
e os reis apenas seus oficiais.
Agora
que não há mais nem pode haver religião nacional exclusiva, devemos tolerar
todas as que se mostram tolerantes com as outras, desde que seus dogmas nada
tenham de contrário aos deveres dos cidadãos. Contudo, quem quer que ouse
dizer: Fora da Igreja não há salvação, deve ser banido do Estado, a menos que o
Estado não seja a Igreja e o príncipe não seja o pontífice. Tal dogma só pode
ser útil sob um governo teocrático; sob qualquer outro, é pernicioso. O motivo
pelo qual Henrique IV, conforme se diz, abraçou a religião romana deveria ser
deixado a todo homem de bem, e sobretudo a todo príncipe que soubesse
raciocinar (43).
______________
Júlio César Anjos: Conclusão: Do Contrato Social, de Rousseau, é Maquiavel por dentro (a essência) e Montesquieu por fora (a forma).
Resumo Contrato Social Rousseau de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível emhttp://efeitoorloff.blogspot.com.br.
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