Por: Rubem Braga
AS
FOTOS estão sensacionais, mas algumas das elegantes não “souberam posar" —
confessou Ibrahim Sued a respeito da reportagem em cores sobre as "Mais
Elegantes de 1967", publicada em Manchete.
A
verdade é mais grave, e todos a sentem: as "Mais Elegantes" estão às
vezes francamente ridículas, às vezes com um ar boboca e jeca, às vezes
simplesmente banais. A culpa não será de Ibrahim, nem do fotógrafo, nem da
revista, nem das senhoras; o que aconteceu é misterioso, desagradável, mas
completamente indisfarçável: alguém ou, digamos, Algo, Algo com maiúscula, fez
uma brincadeira de mau gosto, ou talvez, o que é pior, uma coisa séria e não
uma brincadeira; como se fossem as três palavras de advertência que certa mão
traçou na parede do salão de festim de Baltazar; apenas não escreveu nas
paredes, mas nas próprias figuras humanas, em seus olhos e semblantes, em suas
mãos e seus corpos: "Deus contou o dia de teus reinos e lhes marcou o fim;
pesado foste na balança, e te faltava peso; dividido será o teu reino."
Oh,
não, eu não quero ser o profeta Daniel da Rua Riachuelo; mas aconteceu alguma
coisa, e essas damas que eram para ser como símbolos supremos de elegância e
distinção, mitos e sonhos da plebe, Algo as carimbou na testa com o "Mane,
Tekel, Farés" da vulgaridade pomposa e fora de tempo. Oh, digamos que
escapou apenas uma e que há uma outra que não está assim tão mal. Mas as 12
restantes (pois desta vez são 14), que aura envenenada lhes tirou o encanto, e
as deixou ali tão enfeitadas e tão banais, tão pateticamente sem graça,
expostas naquelas páginas coloridas como risíveis manequins em uma vitrina de
subúrbio?
Que
aconteceu? Ninguém pode duvidar da elegância dessas damas, mesmo porque muitas
não fazem outra coisa a não ser isto: ser elegantes. Elas são parte do
patrimônio emocional e estético da Nação,
são respeitadas, admiradas, invejadas, adoradas desde os tempos de
Sombra; vivem em nichos de altares invisíveis, movem-se em passarelas de
supremo prestígio mundano — e subitamente, oh! ai! ui! Um misterioso Satanás as
precipita no inferno imóvel da paspalhice e do tédio, e as prende ali, com seus
sorrisos parados, seus olhos fixos a fitar o nada, estupidamente o nada — quase
todas, meu Deus, tão "shangai", tão "shangai" que nos inspiram
uma certa vergonha — o Itamarati devia proibir a exportação desse número da
revista para que não se riam demasiado de nós lá fora!
Não
sou místico; custa-me acreditar que algum Espírito Vingador tenha feito esse
milagre ao contrário. A culpa será talvez da "Revolução", que tornou
os ricos tão seguros de si mesmos, tão insensatos e vitoriosos e ostentadores e
fátuos que suas mulheres perderam o desconfiômetro, e elas envolvem os corpos
em qualquer pano berrante que melífluos costureiros desenham e dizem — "a
moda é isto" — e se postam ali, diante da população cada vez mais pobre,
neste país em que minguam o pão e o remédio, e se suprimem as liberdades —
coloridas e funéreas, ajaezadas, e ocas, vazias e duras, sem espírito e sem
graça nenhuma.
Há
poucos meses, ao aceno de uma revista americana, disputaram-se algumas delas a
honra de serem escolhidas, como mocinhas de subúrbio querendo ser misses, e no
fim apareceram numas fotos de publicidade comercial, prosaicamente usadas como
joguetes de gringos espertos. Desta vez é pior: não anunciam nada a não ser a
inanidade de si mesmas, tragicamente despojadas de seus feitiços.
Direis
que essa derrota das "Mais Elegantes" não importa... Importa! As
moças pobres e remediadas, a normalista, a filha do coronel do Exército que
mora no Grajaú, a funcionária da coletoria estadual de Miracema, a noiva do
eletricista — todas aprenderam a se mirar nessas deusas, a suspirar
invejando-as, mas admirando-as; era o charme dessas senhoras, suas festas, suas
viagens, suas legendas douradas de luxo que romantizavam a riqueza e o desnível
social; eram aves de luxo que enobreciam
com sua graça a injustiça fundamental da sociedade burguesa.
Elas
tinham o dever de continuar maravilhosas, imarcescíveis, magníficas. É possível
que pessoalmente assim continuem; mas houve aquele momento em que um vento
escarninho as desfigurou em plebéias enfeitadas, em caricaturas de si mesmas,
espaventosas e frias.
Quero
frisar que dessas senhoras são poucas as que conheço pessoalmente, e' lhes dedico
a maior admiração e o mais cuidadoso respeito. Não há, neste caso, nenhuma
implicação pessoal. Estou apenas ecoando um sentimento coletivo de pena e
desgosto, de embaraço e desilusão: nossas deusas apareceram de súbito a uma luz
galhofeira, ingrata e cruel; sentimo-nos traídos, desapontados, constrangidos,
desamparados e sem fé. É duro confessar isto, mas é preciso forrar o coração de
dureza, porque não sabemos se tudo isso é o fim de uma era ou o começo de uma
nova era mais desolada e difícil de suportar.
A Traição das Elegantes, Rubem Braga, 1967.
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