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É malévola. Mas poderia ser Rousseau

Por: Júlio César Anjos

Caso alguém não tenha assistido ao filme, e não queira saber sobre os “spoilers” remetidos ao texto, favor descartar a leitura do artigo. Mas se a pessoa não se importar com as revelações ofertadas, pois está mais preocupada com o aspecto “inteligível” do contexto, é contumaz que aprecie a leitura de ocasião. Àqueles que compreendem Rousseau e também assistiram o entretenimento, a resenha será mais compreensível que nos dois casos citados anteriormente. Dada à informação, que se esclareça o real teor do filme de Rousseau, travestido em animação.

A grande película de animação da Disney, Malévola, estrelada por Angelina Jolie, é muito mais que efeitos espaciais exuberantes e o fascínio pelo inanimado. No filme alternativo da Bela Adormecida, em que a malvada é a Heroína (?) da trama, o conto reflete muito mais que modulações pueris, de relato infantil.  A abordagem iconoclasta faz o assistente perceber a quebra de paradigma da estória, em que o beijo do príncipe não é o principal quebranto da maldição impregnada pela filha do rei (o beijo "verdadeiro" vem da malévola). Porém o absolutismo dos telespectadores destaca-se que as pessoas somente perceberam a modulação da resenha diferente a estória oficial, em seu contexto final. Mas a essência do conto é análoga à filosofia de Rousseau, em que quase ninguém percebeu a ligação dos pontos, pois as pessoas estavam maravilhadas demais diante das luzes, dos sons, das falas e das apresentações dos atores – e da trama - do filme, se perdendo ao sabor do entretenimento.

Primeiro, que se saiba qual é o pensamento do iluminista francês. Rousseau criou a tese do “bom selvagem”, com o: “argumento de que o homem no estado natural é intrinsecamente virtuoso e moral, pois as instituições políticas e mesmo culturais são intrinsecamente corruptas”, com ênfase na igualdade do social. Ou seja, se não houvesse instituições, o homem seria “Adão”. Essa doutrina, embora pareça bonitinha, é muito perigosa, pois dá a entender que: 1) A pessoa nasce boa (é boa por natureza); 2) o meio “oprime”; 3) A pessoa se modifica (fica má). Rousseau influenciou a Revolução Francesa, assim como influencia a Maria do Rosário a defender assassinos porque o "sistema oprimiu a inocente” criatura. É contrária ao pensamento de Hobbes, em que o homem é o lobo do homem. E também é divergente da filosofia cristã, em que o homem sempre tem que repelir o vício: “Não deixeis cair em tentação”. O viés do iluminista franco na teoria é bacana, mas na prática é terrível. Chega de prolixidade, que se chegue aos finalmente. Não é mesmo?

No filme, Malévola, enquanto pequena, deixa no ar até mesmo se ela é órfã, pois os pais dela não aparecem na estória. Por que não aparecem? Porque família é uma instituição. E que teriam no ápice Rei e Rainha (outro tipo de instituição artificial), com Malévola sendo princesa, corrompida desde o início (nascimento). Por isso que a Malévola aparece voando sozinha, sendo bondosa com toda a natureza – intacta – a sua volta, com um show de perfeição, tão virtuosa quanto a Terra de Adão. Malévola, “boa selvagem”, caridosa, bondosa, cheia de virtude, esbanjando paz e amor, num paraíso intocável. Porque não há instituição alguma que a faça se desvirtuar, mudando o curso, tornando Malévola má.

Já do outro lado da fronteira da terra das fadas, há o império dos homens, com Rei, Rainha, fortificações, diferenças que tornaram o homem virulento, contaminado pelas instituições. Stefan, o menino humano do conto, já com alguns vícios ocultos devido a contaminação institucional, “invade” a terra das fadas, em que tenta roubar uma pedra preciosa da terra encantada. O pequeno Stefan já estava contaminado, já fazendo pequenos delitos, embora “maravilhado” com a riqueza natural da terra das fadas. Ou seja, duas crianças se encontram ao acaso, sendo que o humano é ladrão, enquanto que a “boa selvagem” Malévola não liga para bem natural. Enquanto o moleque, contaminado pelos vícios das instituições humanas, quer obter a pedra preciosa pelo valor “monetário”, a Malévola considera tal pedra somente mais um recurso natural banal, diante de todas outras riquezas naquele paraíso.

Os dois jovens (Stefan e Malévola) crescem. A malévola continua da mesma forma, não mudando nada (a não ser o aspecto físico). Já o Stefan vê, na morte do Rei (ao dar o trono para quem matasse Malévola), a oportunidade de conseguir “subir na vida”, deixar de ser um súdito e virar futuro Rei. Mais uma vez a estória mostra a instituição, como a “classe social” (no reinado existe classes), sendo catalizador para que a pessoa que, em princípio, é boa, torne-se, pela ganância, um ser mau. Diante disso, Stefan conspira contra Malévola, tirando sua asa, traindo a “pobre” moça indefesa e inocente (não vê malícia de nada). Stefan não a mata, mas leva a asa da Malévola como troféu para o Rei, que está a morrer, dando o trono do império para Stefan, por ter supostamente matado a Malévola.

Agora sim, com muleta, justificativa, plausibilidade, Malévola torna-se má, pois ela foi agredida antes (primeiro), prejuízo causado pela ganância do homem, ao tirar as asas dela, gerando uma espiral de animosidade na trama.  Pois a instituição viciosa do homem, ao causar dano na Malévola, fez com que a boa selvagem se tornasse má. Assim como o filme mostra que Stefan não é mal porque não matou Malévola quando teve oportunidade (sendo uma pessoa ruim porque é institucionalizado pelos vícios do castelo), Malévola só se tornou má após somente ter sofrido um trauma, em que justifica a animosidade no conto.

Nesse meio tempo, nasce a princesa Aurora, filha do agora Rei Stefan. As 3 (três) fadinhas miniaturas (com "compostos" de Rousseau) vão abençoá-la, sendo que a primeira joga o pó mágico da beleza, a segunda joga do amor fraterno e, quando a terceira vai jogar um amor qualquer, Malévola faz discurso de ódio e pragueja o bebê, jogando o feitiço do sono, da bela adormecida. O pai, desesperado, tenta esconder a criança do mal, mas o que faz mesmo é afastar o amor paterno, porque enlouqueceu diante da possibilidade de perder a filha (perde-se a instituição familiar - pai, mãe e filha). Enquanto a criança cresce, Malévola “cuida” da jovem até o dia do feitiço, com "zelo"(?), com "paciência" (?), com "fraternidade" (?), ao passo que Aurora passa a ter simpatia por Malévola, relacionamento de afinidade entre as duas mulheres da estória. O conto quer dar a entender que Malévola é boa o tempo todo, enquanto o pai, afogado em rancor, dentro do calabouço institucional chamado castelo, se enraivece a cada dia, ficando mais feio ao passar do tempo.

A menina (Aurora) recebe ajuda de Malévola, que sempre está distante, mas, em um passe de mágica, a moça começa a amar malévola como se fosse um parente próximo, loucura da película, pois não há muita explicação para tanta união. E, veja bem, em nenhum momento há um amor de mãe e filha, mas uma espécie de “imprinting”, uma afinidade entre Malévola e Aurora, pois nada diz que os papéis sociais estabelecem entre uma delas ser mãe e a outra filha, pois não há nenhuma relação explicita no filme. O máximo que se expele ali é: “Posso morar na terra das fadas?” (pergunta que Aurora faz para Malévola). E acabou. Portanto, deve ser algum amor de natureza, do bom selvagem de Rousseau, sem pai nem mãe, só com uma tutora toda hora a chamando de “praguinha”.

No final, todos são bons e o acaso fez com que eles tornassem maus, ao passo que se não houvesse o humano malvado, com os seus vícios institucionais, através de organizações materialistas, o mundo seria intocável, Malévola seria uma chifruda do bem e o mundo seria perfeito. A maior polêmica do filme não é sobre uma suposta doutrinação satânica em curso. O maior problema é mostrar, de forma velada, a filosofia de Rousseau, com uma estória alternativa, sem pé nem cabeça, tão escondida que se perde aos efeitos especiais, áudios e imagens digitais, além do conto feito a parecer inofensivo, tão pueril que parece até trivial.

Portanto, muita gente criticou o filme, achando que seria uma publicidade satânica para descaminhar crianças cristãs indefesas. Nada disso, o maior mal desse filme mesmo é levar a ideia do Rousseau, do bom selvagem, através de doutrinação ideológica, em uma película animada. Sem falar que o maior ensinamento, para as crianças que saem dos cinemas ou do sofá de casa, é que um erro justifica o outro, como a estória tende a dizer. Isso é mais perigoso do que tudo, infelizmente.

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Obs: Quando Aurora volta para o Castelo, sabendo que Malévola que a enfeitiçou, a menina corre aos braços do paí, que não retribui da mesma forma, dando a entender que Stefan não gosta da filha. Essa desfaçatez tremenda mostrou o lado feio da Disney, que boicota o amor natural de pai e filha, para reverberar ideias "alternativas". Há várias justificativas para isso, como, por exemplo, o fato de que um abraço caloroso poderia gerar o amor verdadeiro entre Stefan e Aurora, mitigando o conceito do filme, além de outras desculpas quaisquer. O fato é que não precisava tornar o pai tão desalmado ao ponto de nem abraçar a filha, como o estúdio de Hollywood fez parecer ser. 


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É malévola. Mas poderia ser Rousseau de Júlio César Anjos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em http://efeitoorloff.blogspot.com.br.

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