Por: Júlio César Anjos
A cidade pacata tinha como logradouro a encosta de um morro qualquer.
Escondida entre o volumoso monumento de terra, a região era esquecida pelos
transeuntes das vias federais, pois ninguém sabia da existência de tal
localidade. Sabe-se, de antemão, que os moradores da região são poucos, muitos
vivem ali desde a concepção dos ancestrais, o que mostra que as pessoas se
conhecem de tantos e tantos verões passados. Na cidadela há um símbolo
peregrino, um obelisco transeunte, Caprina é a única cidadã que não tem um
teto, só vive perambulando de dia, e a noite dorme no chão.
A menina é de longa caminhada e
pouca prosa, charmosa como uma rosa, embora a beleza seja escondida pela escassez
de higiene, limpeza pessoal e ingredientes da beleza artificial. A menina deve
ter por volta de 16 anos, mais ou menos, sem pai nem mãe, a única tutora é a
cidade que a afaga de forma excêntrica. Caprina é atrasada no pensamento,
possui dificuldade em entender coisas básicas, pois deve ter algum problema no
cérebro. Mas, embora retardada (no sentido de atrasada), a menina sente e sabe
de tudo, pois sempre demonstra com sorriso ou com o rosto fechado a tudo o que
acontece ao contento dela.
Já a cidade é atrasada por natureza mesmo, não há riqueza na região, o
que sobra é conversa do tipo fofoca, e a falta de atividade que clama o
bucolismo enraizado na cidade dormitório. Ninguém mexe com ninguém, todo mundo
vive na paz do ignorar, cada um fazendo a sua e a cidade se conduz por si
mesma. A destreza do povoado é somente o rural, a habilidade é a manipulação da
terra, por isso que quem compra um pedaço de chão nunca erra, mesmo a cidade
mostrando que não possui, a priori, valor algum. Isolados do mundo, buscam pela
coletividade do medíocre a sociedade do ostracismo, cidade pacata em tudo, até
na morosidade do dinheiro.
A única utilidade do lugar é a Caprina que, mesmo sendo lesada, serve
para satisfazer as necessidades dos moradores, pois é de muita “ajuda” para os
moradores da localidade. Brinquedinho de todos os demais, a deficiente mental
serve de bode expiatório para tudo, pois é fácil vê-la sendo agredida pelos
nativos do lugar.
A vovó - que não sai de casa - a requisita para que fique segurando a
bola de lã, ao fazer o tricô, para a velhota fazer fofoca com a menina que só
escuta e nada fala, como se fosse uma ouvidoria ambulante, a idosa ainda agride
fisicamente, ao dar um tapa na cara, quando a menina faz um ar de desaprovação
sobre um comentário qualquer. Já o mecânico pede “ajuda” para a Caprina, que de
prontidão fica na oficina tentando atender o trabalhador da graxa que, às vezes
inconformado com a vida, descarrega na menina a raiva que tem por dentro, ao
chamar de retardada e doente sempre quando erra a ferramenta pedida pelo
mecânico raivoso. E os meninos gêmeos da solteira, ao não ter o que fazer,
sempre fazem brincadeiras de jogar pedra ou qualquer coisa na Caprina, diversão
pelo simples ataque contra quem não sabe se defender. Esses são somente 3 casos
dentre tantos que ocorrem com a Caprina, menina pacata, debilitada e
defenestrada por todos, por causa do nada que acontece na cidadela, a diversão
é agredir a menina quieta.
Caprina, às vezes, fica semanas sem tomar banho, semanas sem comer e/ou
dias até mesmo sem dormir, pois não tem teto para fazer as necessidades
fisiológicas, não tem como se sustentar, de vez em quando alguém se lembra da
pobre moça e, por dor na consciência, oferta um pouco de alimento e banho – o que
é bem raro. Mas, mesmo diante de tanto
infortúnio, Caprina não mudava o jeito de ser. Quase sempre se avistava Caprina
sorrindo de um lado para o outro, como se nada a abalasse, nem mesmo a doença
da cidade que tanto a atacava, muito menos a doença que a paralisava de
afazeres.
Caprina tinha somente uma vestimenta, o traje padrão, uma camisola
branca, uma sandália e uma pulseira branca no pulso esquerdo. E só. Aparenta
ser loira, embora o cabelo amarelinho torna-se quase sempre marrom, porque o
barro da cidade entranha no coro cabeludo, porque Caprina é sem teto, sem amor,
mas com dignidade abundante. Magra e alta, há uma elegância ao meio da feiúra
do maltrato, há elegância até mesmo no maltrapilho, pescoço fino e alongado e
forma correta de andar (diga-se posição correta porque não é convexa na forma
de se postar), apesar da cabeça sempre estar abaixada, o queixo caído deriva
mais do problema mental do que da submissão em ser um vegetal humano.
A única pessoa, talvez, que não agride a caprina é um dos bêbados do bar
da cidade. Já os outros bêbados agridem a moça com facilidade. Há um que é tão
hostil com a Caprina que cospe no chão sempre quando enxerga a menina. Já o
outro bebum, o que não ofende a moça, é o único ser da região que olha para a
Caprina como um ser humano, que tem coração e sente as coisas acontecendo.
Certa vez, para ver o que acontecia, o bebum bom deu um porre na Caprina, e viu
que, apesar de todas as ofensas, Caprina tinha brilhos nos olhos, a alegria era
verdadeira.
Sempre quando Caprina gostava de uma boa ação de alguém, ela falava
baixinho: “eeeeeee” e levantava a mão direita (cerrada), como sinal de
felicitação. Não era sempre que acontecia isso, pois não era sempre que havia
boa ação dos moradores da cidade. Até no pileque que o bebum bom deu a ela, Caprina
falou baixinho “eeeeee” e levantou o punho sem rigidez, da fraqueza criada pela
força do álcool.
Um ano se passou e nada mudou em relação ao retrato da cidade. Mas algo
mudou em relação aos comportamentos, o trato com a moça ficou cada vez pior,
mais agressões verbais e físicas, parece que a sociedade inteira descarregava
toda a amargura em vida na pobre moça; e todos consentiam em não julgar as
agressões um dos outros contra a menina, pois a Caprina era uma espécie de muro
das lamentações dos inconformados, sparring dos ressentidos, ouvidoria dos
frustrados.
Numa noite qualquer, o outro bebum mau, com a cara cheia de fracasso e
álcool como forma de sudorese, começou a mexer com a pobre moça indefesa, que,
com certeza, teve medo da ação. O agressor começa a brincar com Caprina,
traquinagem de homem que fugiu do racional, começa a bolinar a menina indefesa,
a ataca como se fosse propriedade particular, tira a vestimenta e começa a
roçar a menina, até o ponto de começar a estuprá-la ao relento, bem no meio da
cidade. A menina chora de soluçar, é a primeira vez que se escuta um som mais
agudo da Caprina, que nunca falara antes por ter dificuldade de gesticular. Após
satisfazer da carne, o bêbado mau cospe no chão, chuta o rosto da pobre moça e
vai embora como se nada tivesse feito, com a consciência tranqüila das pessoas
que cometem delitos, e depois dos ocorridos, culpam as drogas.
Caprina dorme ali mesmo, atentada violentamente ao pudor, estuprada pela
cidade toda, pois todos fingem sempre que nada acontece com a moça, como se
fosse o bode expiatório dos judeus, em que todo mundo cometia pecados contra a
deficiente, sem o menor pudor, tranqüilos que nada faziam de errado.
Caprina acorda ao aparecer do sol, dormindo bem no meio da rua,
consternada com a situação. Começa a chorar. Todo mundo se espanta em ver pela
primeira vez a tristeza da pobre moça, mas, como rotina da cidade, ninguém se
comove com o soluço da menina. É natural apanhar sempre, como se fosse um
pedaço de pau sem sentimentos, como se o choro fosse falso, mesmo tendo o som
da profunda alma inocente. Caprina, de repente, para de chorar, pega uma
flor bem-me-quer e começa a jogar do jeito dela, sem o mal-me-quer, apenas
despenando a folha. Caprina começa a andar em direção da saída da cidade, no
sentido da estrada federal, direção de ida sem volta, para nunca mais voltar.
O tempo foi passando e aos poucos as pessoas começaram a sentir falta da caprina.
A velhota - que sempre fofocava e agredia Caprina – não tem com quem conversar,
nem desopilar a raiva em
outrem. O mecânico não pode mais despejar a raiva em ninguém
também, a menina que era a esponja dos desafetos não está mais ali. Os gêmeos
também não possuem mais o brinquedo humano para ficar atirando objetos. E o
bêbado fracassado não tem mais quem estuprar.
Como todos os tortos da pequena cidade não tinham com quem chutar o pau
da barraca, começaram a agredir uns aos outros, mudando a cidade que até antes
era pacata, embora desrespeitosa com Caprina, mas respeitosa entre os moradores
do local.
A cidade ficou, além de sem graça, violenta. Não se sabe se a cidade
começou a ficar hostil porque Caprina não é mais o escoro de todos ou foi pura
coincidência a saída dela com a eclosão da violência, mas o fato é que após a
saída de Caprina a cidade teve até assassinato. O bêbado bom, que gostava da
caprina, foi tirar satisfação, no bar, contra o outro bêbado mau que estuprou a
menina. O bebum bom ficou mau e matou o outro bebum mau sem dó.
A velhota da bola de lã está gagá e sem ninguém para cuidar; o mecânico
faliu; e os gêmeos estão presos porque fizeram traquinagem em outra cidade.
Há que jure rezar para a Caprina voltar. Caprina deve estar em outra
cidade gritando: “eeeeee”, com o punho um pouco ao alto e cerrado, com a voz
baixinha, brilhos nos olhos, como de costume. Linda Caprina, deixou saudade.
O trabalho Caprina de Júlio César Anjos foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em http://efeitoorloff.blogspot.com.br/.
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