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Sociedade dos Urubus livres



Por: Júlio César Anjos

Um Urubu voa meio ao horizonte sem fim, viaja pela brisa que refresca, tateia o ar em direção ao desconhecido, movimenta-se ao planador, observa os acontecimentos ao redor, investiga possibilidades, caça oportunidades, vive sem limites. A solidão conforta o grande pássaro negro, animal que não é muito chegado à multidão, gosta de divagar sozinho sobre as peculiaridades de sobrevivência, como a segurança perante os predadores à noite, a alimentação padrão e a mudança do ambiente.

As coisas mudam. O ambiente que outrora era recheado de terreno descampado, agora faz inversão causada pela degradação, o grande pássaro negro se abriga em prédios abandonados. É lá em cima, na caixa d’água, que o Urubu da cidade espreita a alimentação (geralmente ratazanas mortas), o cardápio unificado, padrão. O requinte da ave é um cardápio de raras possibilidades, dejetos em decomposição e nada mais. O Urubu sente a falta de um aperitivo mais refinado, com gosto extravagante, a fim de satisfazer o desejo momentâneo. Vai á caça, espreita, procura e nada acha. Cansado de buscar alimento sofisticado, o Urubu avista um passarinho preso em uma gaiola, está  em cativeiro em uma residência.

O Urubu, ao pensar sozinho, criou intriga, debruçou aos pensamentos vagos, foi tratar comunicação com o pássaro enjaulado. Persuasivo e melindroso, a ave de rapina começa a conversar com o animal enclausurado, pois está com pena do indefeso maltratado. Disse oi, o de praxe, a boa educação padrão para inicio de conversação, primeiro começou com perguntas simples, complexando a conversa conforme o passar do tempo.

Enquanto conversam, o Urubu divaga sobre as ações, explica que os dois animais são solitários, a grande ave por opção e o passarinho indefeso por obrigação.  Muitas pessoas prendem o pássaro de bom canto, mas ninguém corta a asa do urubu, é engraçado o valor que as pessoas dão às coisas, o que tem valor é espezinhado, definhado pelo sistema, e o que não tem valor é beneficiado pelo desinteresse coletivo. 

Enquanto falam sobre coisas de pássaros, a ave negra volta a pensar sobre detalhes, fica encafifado em notar que o urubu possui mais facilidade em encontrar e obter comida do que o passarinho da gaiola. No abastecimento de alimentação, toda hora aparece uma ratazana morta, em qualquer lugar, já o passarinho só come alpiste, isso quando fica há tempos com fome porque o dono esqueceu-se de colocar alimentação na caixinha. 

Cansado naquele momento de ter conversado, e observado o passarinho da gaiola, o Urubu resolve planar, fazer atividade física, e pensar sobre o coitado do animal encarcerado. O pássaro negro chega à conclusão que a esquisitice o liberta, pois o passarinho de bom canto e de beleza pura é raptado, enquanto que o urubu fedido e habitado na feiúra é defenestrado pelas pessoas, o que no momento parece ser algo bom, já que os homens, em certa ocasião, são animais irracionais.

No dia seguinte o Urubu volta a conversar com o novo colega, o pássaro negro fala sobre liberdade, do espaço, do tempo, da suavidade do ar, do rebento da tempestade, a falta de limites, e da pluralidade que o mundo oferta. Já o passarinho acredita que o mundo seja um labirinto fechado no teto, mas bem alto, por isso que o passarinho pode voar um pouco para se movimentar, nada mais. A inocência do passarinho indefeso é justificada pela visão de mundo dele, é limitado porque o homem, desde a nascença do animal, o fechou em um pequeno local, a gaiola conceitual.

Enquanto se observam, o passarinho demonstra tristeza, está perdendo muitos pelos, está mais magro, não canta mais, parece cansado com a rotina padrão imposta, a alegria nesses últimos dias foi criar amizade com um Urubu e poder conversar com ele. Já o urubu está imponente, cheio de saúde e de vida, com a pelagem brilhosa, tão vistosa que faz por um instante o Urubu ser mais bonito que o passarinho de bom canto. Quem tem conforto, afinal, o urubu que tem o mundo todo ou o passarinho que depende do homem para tudo? O grande pássaro chega à conclusão que é um felizardo por ser da sociedade dos Urubus livres, pois ninguém os quer para fazer cativeiro. Já o passarinho é azarado por ser bonito e indefeso, além de possuir bom canto. Em uma sociedade degradada, a beleza é asfixiada pela feiúra interna, defeitos de uma comunidade desgastada pela podridão.

Já se passara uma semana, o Urubu sempre vindo ao encontro do passarinho, conversando com o bichinho, trocando informações e conhecimentos nesses últimos dias. Nem precisa explicar que o dono do animal preso fez viagem a negócios, o alpiste e água que antes eram abundantes, agora estão em falta, o passarinho já está sem alimentação, embora saiba que o dono volte á casa logo, o passarinho já passa por necessidades.  Já o Urubu volta a destrinchar mais uma ratazana (o arroz e feijão do animal) comida que nunca falta e sempre aparece no cardápio, é a rotina habitual. O Urubu, enfim, faz uma reclamação da vida, disse que os Urubus não servem nem para serem caças de tiro ao alvo, nunca se viu urubus empalhados em exposições e muito menos a cabeça de um Urubu exposto em uma sala de reunião qualquer, a falta de valor do Urubu valoriza a vida do animal. O passarinho ri da última conversa, explica que passa por igual situação, pois estará na gaiola até a morte, ou seja, não morrerá enquanto não for a hora.

Após falar sobre a situação, foi a vez de o Urubu rir da proposição, fala que o animal de bom canto está morrendo, afinal, por que acha que o urubu faz visitas diárias? O grande animal negro pressente a morte e é da natureza ser solitário, ao aparecer amigável, nada mais fazia do que esperar o cardápio extravagante jazer, partir. Após o relato triste, não se sabe se o passarinho morreu de susto ou porque era a hora dele, mas foi só o Urubu falar a verdade que o passarinho faleceu no mesmo instante. 

O Urubu olha para o animal morto, pensa sobre a tática, e resolve vir no outro dia apreciar a iguaria rara, um passarinho de cativeiro. O grande pássaro volta no outro dia, avista o outro animal já em decomposição, se atira na gaiola e começa a bicar o bichinho  bom canto, tirando pedaços do passarinho, come até chegar ao ponto que a carcaça do animalzinho saia facilmente das grades da gaiola. Então, o Urubu retira a carcaça e sai com o resto do pequeno passarinho no bico, vai apreciar o alimento em outro lugar, em outro terreno.  

O dono do passarinho chega a casa, olha para a gaiola do passarinho e verifica que o animal sumiu. Só o que apareceu foi uma pena grande preta. Analisa e descobre que é de um Urubu. Liga para um amigo dentre tantos e diz que o passarinho que tinha por longa data foi atacado e morto por um Urubu qualquer. Para o dono do passarinho, o urubu matou o animal de estimação...  - Será mesmo?

O passarinho de bom canto nunca viu o mundo, já o Urubu triunfa de vitalidade e alegria em viver, está em vigor pleno, com a pelagem brilhosa e bonita, pele vistosa, plana ao horizonte com a comida extravagante, o passarinho de gaiola.

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