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Erro causal



Por: Júlio César Anjos

Jó não imaginava ser pai de família lá pelos seus 20 e poucos anos. Fechou os olhos e, de repente, mergulhou em uma vida como o responsável patriarcal, com a sua rotina voltada a desenvolver os filhos que a sua progenitora gerou.

 Acorda cedo, desliga o despertador, se veste, faz a higiene pessoal, beija a mulher e os filhos (que ainda estão dormindo), faz o desjejum e sai para trabalhar. Após cumprir o tempo laborioso, volta para casa, beija a mulher e os filhos novamente, assiste ou lê alguma coisa e vai dormir. E o looping da rotina segue até os dias atuais.

Jó tem 2 filhos morenos lindos, um menino e uma menina. A menina é a cara da mãe e o menino se parece com o pai. A mulher é linda e zelosa, cuida da casa de forma magnífica. O menino que se tornou pai de família adora o status quo da rotina conservadora da família. Da apresentação dos entes queridos resta saber apenas detalhes: a mulher é morena e chama-se Margarete e os filhos chama-se Vitória e João. 

Jó não é tão aplicado a causa domiciliar, apesar de estar sempre perto dos acontecimentos, que é desligado totalmente aos pormenores da casa, deixa toda a organização residencial e familiar para a mulher, pois a esposa é mais competente. Família linda que contempla a construção que Jó fizera durante os anos de vida como adulto, o sucesso em assentar tijolo por tijolo da construção civil e espiritual.

Porém, como nem tudo é perfeito, algumas vezes havia brigas banais de casal. Geralmente as encrencas durante o dia terminavam em reconciliação nos edredons, com o movimento uniformemente variado no quadril. A frase anterior implícita explica a ação explicita. Doravante aos pedidos mútuos de desculpas, também derivava de rotina a briga vespertina justificada em exercício noturno. 

Mas certo dia Jó não se reconciliou com a mulher, ao contrário, até mesmo blasfemou que se pudesse, voltaria no tempo e trocaria de família, já que a atual só trazia incomodo ao atarefado pai de família. Jó vai dormir de cabeça quente e descansará até o despertador avisá-lo para acordar e, assim, ir trabalhar.

Ao acordar, Jó desliga o despertador, se veste, faz a higiene pessoal, beija a.... - Mas quem é essa mulher? Jó fica extasiado, não pode acreditar que outra mulher esteja na cama, pois tinha dormido junto com a esposa.

– Quem é você? – perguntou o pai de família.
- Sou ou sua esposa, que pergunta.... – Respondeu a loira estranha.
- Como assim minha esposa?
- Ué, casamos e temos dois ótimos filhos. Você está bem?
- estou. E não estou entendendo nada! Cadê a Margarette?
- Que Margarette?
- Margarette a minha esposa. E qual é o seu nome?
- Sou a Roberta. Você enlouqueceu!
- Não, você é que está louca em dormir na minha cama. Vou ver se meus filhos estão bem...

E assim Jó vai até o quarto das crianças gritando pela Vitória e o João. O homem cora de tão assustado que fica, pois há uma menina e um menino, mas eles são loiros, e a menina se parece com a loira estranha que dormiu na mesma cama dele.

Jó, desesperado, chama a polícia. Os fardados chegam para ver a ocorrência, checam documentos, recolhem depoimentos e descobre que está tudo normal, a loira é a esposa dele e os filhos também os pertence. O homem sai de casa e vai trabalhar. Chegando ao trabalho, vê na mesa do escritório o retrato da família, contendo a loira e os dois filhos loirinhos. Ele fica surpreso, não pode acreditar no que está acontecendo e pede para o seu chefe ver o retrato e verificar se é a família dele mesmo. O chefe fala que sim e não entende a pergunta, mas esquece a ocorrência.

Durante todo o expediente de trabalho o homem dá-lhe a fazer denúncia de desaparecimento, justifica-se à policia local que é um engano e que a loira e as duas crianças não constam como a família dele, ficara perplexo com tudo o que estava acontecendo, volta para casa e, só de pirraça, dorme do lado da loira, mas não a toca, pois desconhece ser a mulher dele, não se parece em nada com Margarete.

Na manhã seguinte desliga o despertador, se veste, faz a higiene pessoal, beija a.... Japonesa! Corre para olhar o quarto dos filhos e vê o casal japonês, sendo a menina muito parecida com a mãe japonesa.

Já resignado o homem nem discute mais com as pessoas por causa das ocorrências diferentes, só possui a esperança de acordar desse sonho louco que ele acredita estar transitando. Vai trabalhar e olha na mesa a foto dele com as japonesas, que ontem eram loiras e que no normal era a família dele que constava no retrato. Desanima, fica desmotivado de continuar a rotina, inscreve-se em um programa de tratamento psicológico e fica internado.

Noite difícil, pousará fora de casa, sem o aconchego do lar, apenas na companhia dos enfermos psicológicos e do que resta de consciência, já que achara ser um doente mental. Acorda de manhã sem estar na própria cama de casa, no dormitório não há muito conforto, apenas uma cama branca encostado na parede, sem móveis e utensílios, somente uma escrivaninha branca também próxima à porta. Pelo menos o efeito de não acordar com uma pessoa estranha ao lado acalentou sua alma, pois deixou de sentir naquele dia a sensação estranha de ser enganado pelo cérebro.

Após dois dias internado, era dia de visita no hospital, então todos os doentes se organizavam para fazer contato com as pessoas próximas, os entes queridos agraciam os problemáticos com as visitas, é um calor humano que não se deve negar. Mas Jó não convidou ninguém, então pode ser que não veja a família por aquelas bandas. Ele está com saudades da Margarete e os dois filhos e não aquelas treliças de tudo quanto é etnia que ele vivera naqueles tempos.

No cantinho do jardim do manicômio, Jó fica vendo os contatos familiares entre os doentes e os entes queridos, feliz pelos outros, pois os estranhos pelo menos sabem que suas famílias são reais.  De repente, uma mulher de descendência áfrica aparece com um casal de filhos, em que a menina se parece muito com a mãe. Ela chega perto dele o chamando de amor. Jó olha bem firme para a mulher, chama um guarda do manicômio, e pergunta para o trabalhador se as características da mulher. O guarda mostra que de fato é uma mulher de descendência Afro e sai do local para fazer outras obrigações.

O homem que estivera faltoso na rotina agracia-se à possibilidade de transar com a jovial moça, mesmo não sendo sua esposa, pois não sabe até quando tal erro prolongar-se-á. Como se marido dela fosse, corteja a bela moça para a sala da intimidade, a fim de tê-la naquele momento. Termina o ato prazeroso com a felicidade que se destaca a face, trasborda felicidade no rapaz que até então não tinha alegria alguma de viver, apenas vivia várias vidas, com pessoas estranhas como sendo da família.

Jó volta para casa e começa a viver da forma que deus assim desejasse. Se forem para ele ter várias mulheres diferentes todos os dias em sua cama, então que a vontade seja feita e que tudo seja abençoado. Jó aproveitará do problema ocasionado (não importa se é da cabeça dele ou não), e viverá como se não houvesse amanhã, transará com as belas moças que a cada dia aparecem na vida dele, mesmo que todas as moças sejam por dentro a mesma Margarette.

No outro canto da cidade um jovem estudioso, chamado Júlio César Anjos, palestra sobre a teoria dos muitos mudos e os problemas que podem causar as interferências. O erro causal é uma anomalia que um mundo se coaduna com outro, provocando ruídos. Ruídos são situações que não fluem de forma normal o mundo em que possui tal problema. Um exemplo que o professor cita é o caso do dono do gato. Um homem não tem gato, nunca o tivera um antes, tem até alergia ao felino, mas o bichano aparece em sua casa todos os dias, todo mundo explica a ele sobre como gosta de gatos, fazendo com que o rapaz seja um louco para os demais. O cidadão não é louco, só está com um gato como ruído no mundo dele, em que tal bichano é gato dele em outro mundo, mas é também dele nesse mundo, mesmo ele não tendo consciência de tal situação. E termina a palestra falando que muitos loucos não possuem problemas cerebrais, são pessoas atormentadas pelos ruídos de outros mundos. Um ruído muito conhecido como loucura é a esquizofrenia, em que só a pessoa vê o gato e os demais não o vê, e outra interferência antagônica é a amnésia, em que todo mundo diz a ele que o gato é dele, mas ele não acredita nisso porque não se “lembra”.

Jó descobrira da existência do pesquisador, das teorias, e que tal fundamentação bate com os problemas ocasionados com ele. Resolve falar com o jovem sobre toda a situação, confortável com a sensação de saber que não é louco, apenas um indivíduo infortuno que recebeu da herança da natureza tal desequilíbrio. O pesquisador explica a ele que tal situação era potencialmente um desordenamento da teoria dos muitos mundos e que ele seria objeto de estudo á frente. Jó concorda em ser cobaia de pesquisa do jovem e segue a vida normalmente dali pra frente.

A anomalia se destaca somente na concepção da mulher e das filhas, nada mais muda, nem tempo, nem rotina de vida, absolutamente nada, é como se ao invés de falar Margarette toda vez para os amigos, a palavra soasse de outra forma para os receptores, é algo difícil de explicar.

Os anos vão se passando, ele, a mulher e os filhos vão envelhecendo, sempre com o mesmo padrão, a mulher e os filhos são sempre diferentes, apesar de o tempo ter ensinado que pela personalidade sempre são os mesmos filhos e Margarette, só o que muda sempre é a roupagem, a característica dos familiares.

O jovem estudante se forma e vira doutor, com grande sucesso devido ao estudo do problema de Jó, mesmo todos sabendo que tal situação não possui “cura”, embora a medida sirva para tratar os doentes mentais de forma mais humana, pois pode ser que alguns pirados não sejam loucos, apenas estejam passando por distorções dos “muitos mundos”.

Jó já flertara com várias Margarettes diferentes, de Afro até nipônica, desde os 20 até os dias atuais, os 40 e poucos anos que se destaca. Com a idade avançada, e com a resignação do problema, Jó começa a perder o brilho da vida e começa a viver no piloto automático. O homem agora já ficara cansado de tantas pessoas diferentes em fisionomias, mas iguais por dentro. Na juventude das crianças as viu diplomadas em diferentes semblantes, os indianos concluíram o ensino médio, e os hispânicos o ensino superior. Tal maluquice da natureza já não afeta mais o desanimado pai de família, que vê a rotina passar junto ao tempo, com a diferença dos entes queridos todo Santo dia com fisionomia diferente.

Aos 60 e poucos anos a memória começa a falhar, o homem tornara rabugento, faz tempo que sorriso não se via no rosto do homem aposentado, somente olhava para os entes de forma interrogativa, como se perguntasse ”Por que comigo?”, vaga lembranças de muitas atividades em família, porém já não se lembrara mais das fisionomias, apenas fazia esforço para saber como margarette e os filhos seriam ao natural, sem o erro causal. Jó, então, ao recordar de alguma situação, criou uma fisionomia padrão para os familiares, e, assim, se lembrava dos acontecimentos com o rosto em que ele criara e não com as fisionomias diferentes da época. A pequena mudança não soava como falsa, apenas era um conserto que ele fizera nos pensamentos para tornar vívida as lembranças, pois seria muito difícil recordar todas as alterações ocorridas durante toda a vida.

Já aos 70 e poucos anos, perto do fim, Jó somente olha para a filha já velha e no último instante, quase fechando os olhos para abrir as portas do além, o velhote olha o que de fato era para ser a fisionomia dos familiares.

O velho morre. Mas após sair do corpo para encontrar o além, Jó consegue ver as pessoas em volta do túmulo. Era uma multidão, muita gente mesmo, Jó não entendeu em um primeiro momento o que estava acontecendo... observou bem as pessoas e viu que os amigos e parentes distantes eram os mesmos, o que se replicavam eram as viúvas e os filhos, uma quantidade absurda de blocos em apenas três pessoas, Margarette, a filha que se parece com a mãe, e o filho.  Só assim Jó pode descansar.

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