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O Esquema

Por: Júlio César Anjos

Meu nome é Gastão, tenho 45 anos, trabalho em uma empresa burocrática que emite selos de certificação. Gosto da vida pacata, sem muitos sustos, levo a rotina como algo contínuo, sem parada brusca por motivos turvos como a doença e/ou a morte. A vida não é agora, não acredito que a curto prazo morrerei, por isso tenho medo do futuro, poupo-me hoje para obter rendimento a longo prazo, quando precisar.

 Bem, como sou avarento, não sou muito de comprar. Só abasteço-me do essencial. Não vou às compras supérfluas, há um bom tempo, e queixo-me sobre coisas cotidianas como o aumento dos preços por causa da inflação. Pergunto-me a cada dia o porquê sobre a obsessão pelo consumo, do status mal modelado e das manipulações feitas pelos interessados em obter riqueza pelo serviço não prestado. Deve ser porque não vejo sentido nisso... Mas enfim nem todo mundo concorda com os nossos pensamentos e o que é certo para um pode não ser certo para outro indivíduo qualquer.

Saindo da rotina que me afaga, flerto com a impulsividade do eventual, exceção minha que é regra para todos, irem às compras pra adquirir o nada. Dizem que é divertido... Faz mais de 10 anos que não faço uma compra que não seja pelo cartão de crédito, faz tempo que não vejo “dinheiro vivo” em minhas mãos, só faço compras e pagamento via internet, é mais cômodo. Trago comigo um feixe de notas vivas! Mas vejo que é muito papel para pouco valor, um maço de dinheiro que mal dá para comprar uma TV, algo trágico para os dias de hoje.

Retirei certa quantia para fazer o ensejo das compras no varejo. Para mim, é diversão e para os outros é normalidade. Vou ao centro com a vaidade que prevalece, a liberdade que me impuseram e a tônica de fazer uma aquisição pelo sistema eventual, com sorrisos falsos de vendedores, lojas com cheiros estranhos e sons ambiente. Dizem que o odor e o som ajudam a captar o cliente, como se fossem feromônios e gracejos de um macho querendo a fêmea no cio. Entro na loja, faço interação comunicativa, aponto o bem escolhido e a moça pergunta sobre a forma de pagamento. É aí que o mundo muda para mim...

Peço 10% de desconto sobre o valor, afinal estou pagando a vista, em dinheiro, nota por nota, reduzindo o risco, aumentando o caixa da loja com a certeza do pagamento e finalizando antecipadamente a negociação, ficando livre da loja por não dever nada a ela.

Sinto que a minha negociação não foi recebida de forma agraciada, ao contrário, os olhos fixaram aos meus de forma negativa, os semblantes começaram a fechar e todos que ali estavam - vendedores e clientes - olharam-me estranhamente, como se tivesse cometido um delito. A vendedora pediu para que eu esperasse um pouco, os clientes tampavam os ouvidos, as pessoas de um modo geral começaram a sair de perto de mim, como se tivesse feito algo horroroso, algo que a sociedade repudiaria no mesmo instante, um crime aconteceu e até agora não sabia o que acontecera até ali.

A vendedora termina de fazer a ligação e pede para eu aguardar em uma salinha. Pergunto o que estava acontecendo e a vendedora apenas diz para eu esperar na sala. Faço o que me pediram e, como bom cidadão, aguardo na sala. 10 minutos depois chega a polícia indagando sobre a situação, a vendedora explica sobre a negociação e, para mim, tudo corria normal, não sentia que tinha feito algo errado, estava com a consciência tranqüila.

O policial dá voz de prisão a mim, leva-me para a delegacia e diz que eu terei que passar por um interrogatório com o delegado. Na delegacia, o mandante faz perguntas que não me parecem a primeiro momento ofensiva e tão pouco criminosa, como: Se eu tinha dinheiro poupado? Há quanto tempo não fazia compra no varejo? Por que tinha pedido 10% de desconto para a vendedora? Se eu tinha algum problema psicológico e etc.

Com as perguntas, o delegado leva-me para a cela e diz que passarei um bom tempo ali até as coisas se resolverem. Acreditando em um mal entendido, peço um advogado e espero calmamente a vinda do profissional para desfazer todas as objeções tratadas a mim.

O meu advogado chega para defender-me, faz perguntas convencionais, analisa a minha integridade, se está aceitável, e faz as mesmas perguntas que outrora o delegado fez a mim. O advogado então se isenta da defesa, alegando não poder exercer a atividade devido a ética, e indica a defensoria pública para o caso. Eu começo a ficar preocupado e o desespero aparece em forma de incredulidade, será que cometi algum crime terrível?

Sem respostas, dirijo-me para a cela, lugar em que divido o aposento com mais um preso, que começa a conversar comigo:

- Preso: você vem sempre aqui? (brincando).
- Eu: Não, eu não venho com freqüência não, aliás, nem sei por que fui preso.
- Preso: Ah, sei, aqui ninguém sabe por que está aqui e todo mundo é inocente.
- Eu: Eu fui comprar uma TV e fui preso.
- Preso: tentou dar um golpe?
- Eu: Não, quis comprar a vista e com desconto!
- Preso: Cale-se agora mesmo ou senão poderá pegar até pena de morte!
-Eu: Por que?
- Preso: Porque estamos na era Keynisiana. Você acordou do coma hoje?
- Eu: Pensei que tudo era teoria da conspiração. Na verdade eu nem sabia das mudanças, fiquei preso pelas tarefas burocráticas,  não vi o tempo passar, e as mudanças se estabeleceram neste período de inércia social que pratiquei.
- Preso: Então, Você deve ser o único cidadão que tem hoje poupança. Achei que já tinha caído em desuso tal prática, já que não existe um único ser vivo – tirando você – que não esteja devendo na praça. Engraçado não te pegarem antes, deve ter ficado abaixo do radar de visualização do governo.
- Eu: É, eu fiz mais de uma conta de poupança e há um pouquinho em cada uma, então isso não deve ter aparecido como agravante ao governo.
- Preso: Pois é... Mas você será condenado, não tem jeito, eles não vão deixá-lo solto para ser um exemplo aos demais e criar um motim contra o próprio governo, isso nunca será aceito!
-Eu: Mas por que asfixiar a poupança e os poupadores?
- Preso: Você caiu em um esquema de Ponzi, uma espécie de pirâmide. O sistema financeiro possui várias camadas, processos e degraus que se completam entre si. Assim como você foi preso e passou por várias situações como: O povo ficar perplexo, a telefonista ligar para o policial, o policial prendê-lo até a delegacia, a delegacia pegar o teu depoimento, você estar aqui comigo e ser condenado. Você passou por diversas mãos, vamos dizer assim, a mesma coisa é o sistema financeiro.
Eu: Ah, então eu quebrei o sistema da pirâmide financeira indo direto a ponta do processo sem passar por intermediários?
Preso: Exatamente, a partir do momento que você quis pagar a vista, em dinheiro, com desconto, você apagou o sistema bancário, diminuiu o pagamento de tributo ao fisco, não fez a roda girar, sendo que profissionais bancários e do governo não ganharam com a transação, você acabou com o risco de não poder pagar e ter que devolver o bem. Você é um perigo para as pessoas que estão deprimidas, estressadas e cansadas com esse sistema escravo de ter que adiantar o futuro para pagar o passado, e com isso manter o presente. Ou seja, você uniu uma ponta à outra, asfixiou os intermediários no processo e mostrou que tem dinheiro, ou seja, não é um escravo da inadimplência e isso é um perigo para os dias atuais.
Eu: Sei como cheguei a essa situação, mas não sei por que.. Você sabe por que?
Preso: Por que A humanidade gosta do consumo. Quem gosta do homem é cachorro e golfinho.
Eu: Ok, mas, afinal, qual é o seu nome mesmo?
Preso: Chamo-me Júlio César Anjos
Eu: E por que está preso?
Preso: Por saber demais.
__________
A sentença saiu e Gastão teve a pena de morte decretada.

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