Por: Júlio César Anjos
Em uma escola do interior do estado, uma criança, em sala de aula,
pergunta de forma irônica se era verdade que havia há 50 anos um reality show
que mostrava apenas o rosto de uma mulher, estática, durante 1 hora. O
professor pensa um instante...
Aos pensamentos do professor a viagem chega até os tempos áureos da sua
juventude, época em que a cidade interiorana era muito pequena na questão de
demografia, já que na extensão territorial sempre fora pequena mesmo. Naquela
época, a tecnologia não se mostrava tão farta e acessível como os dias atuais,
a diversão sempre estava na rua, através de conversas com os amigos e
entretenimentos, ao céu aberto, como partidas de futebol e lazer em geral.
Assis Chateaubriand traz novidade para o interior do estado, é uma
televisão preta e branca, com limitações técnicas e uma imagem sofrível em um
primeiro momento, mas novidade para as pessoas que nunca tinham visto tamanho
progresso tecnológico. Como iniciara o processo de TV na cidade, não havia
também programas variados, só existiam dois ou três programas feitos em rede
nacional e uma hora somente separados para a TV local fazer o que quisesse. A
TV local, então, para não deixar o espaço sem nada a exibir, mostra uma mulher
de meia idade, bonita, de rosto, sempre imóvel, sem fazer movimento algum, como
se fosse uma estátua.
A cidadezinha pequena, com taxa alta de analfabetismo funcional, começa a
assistir um reality show que é exibida somente para o local, a exibição de uma
pessoa parada durante 1 hora, sem som, sem movimento, como se fosse um quadro
em forma de TV.
A cidade para para ver o programa. A novidade toma conta do local,
ninguém nunca vira antes uma TV, ainda mais uma pessoa estática durante 1 hora,
tudo gerava confabulações, conversas, fofocas sobre tal entretenimento. O
programa virou febre local, e a moça estática virou celebridade, era chamada
como a garota das Araucárias.
Quanto mais o programa era exibido, maior era a quantidade de especulações.
As pessoas contavam quantas vezes à moça piscou; outros faziam apostas para
saber se tinha mexido as sobrancelhas; e alguns até sobre o que a moça estava
pensando no momento da transmissão do programa. Tudo virava notícia.
As pessoas discutiam sobre o programa, sobre a cor de cabelo da moça,
sobre a curvatura dos olhos, a nuance do rosto, a cor da pele, o tamanho do
nariz, a assimetria do rosto... Era tanta coisa, para algo que não continha
nada, que até assustava ver o poder do povo em encontrar coisas inimagináveis.
Um até jurou que conseguiu contar quantos pelos no nariz a moça tinha: Tinha 13
pelos.
Lembro-me até hoje, o primeiro programa terminou com aplausos, pessoas
gritando alto como se o país tivesse ganhado a copa do mundo. Sensação de ver
algo tão excepcional que tornara vívida a felicidade no semblante das pessoas
da cidadela.
O realityshow não decolou para o país inteiro. O programa foi noticiado somente
uma vez, em rede nacional, mostrando o fenômeno que acontecia naquela pequena
cidade, um reality show que nada mostrava além de um rosto e que era tão
assistido pelo povoado.
A cidade era socialista, o povo não conhecia muito diversidades de
programas, só o que já assistira a vida toda, que eram os programas chatos da época....
Então, o diferente apareceu e foi bem recebido pelo povoado, mesmo o novo sendo
algo banal, superficial.
Mas a cidadezinha era completamente diferente ao perfil do programa a ser
exibido, não tinha nada de pacato e frio, era muito festeira e cheia de
algazarra. Com tanta musica sertaneja, com tanta fuzarca nas ruas, gritaria,
falta de paz de espírito até mesmo em igrejas, o programa zen do reality show
ia contramão a tudo o que a pequena sociedade da cidade imaginava ser, serena,
silenciosa, leve, com uma mulher calada por uma hora.
Só existia uma pessoa que tentava convencer o povo que o programa não
passava de algo ridículo, tão medonho que todo mundo sentiria vergonha se
soubesse a verdade, que tudo isso é uma bobagem feita por alienação. Mas
ninguém o escutava, pois tal indivíduo era minoria e chato naquele momento,
careta como diziam os mais radicais. Essa pessoa era o professor que estava
pensando sobre toda a situação.
Mas o povo era alienado por natureza, só trabalhava, e nada fazia além
das festas de fim de semana e assistir ao reality show porque a cidade era
pequena, então tinha poucas festas, diversão e entretenimento (mas existia essa
vida, pelo menos). Todos os vizinhos se conheciam e o pessoal era acostumado
viver como rebanho.
O jovem, o professor atualmente, que ficara perplexa em ver tamanha alienação,
era o único morador da cidade que tinha se aventurado além das fronteiras da
cidade. E isso criou uma bagagem que o fazia diferente dos demais, tinha senso
critico e sabia o que a vida era bem mais que comer, defecar, e assistir um
reality show que não fazia sentido algum.
Existiram 3 realitys shows desses até a extinção do programa; E os 2 primeiros
foram um sucesso, enquanto o terceiro sofreu com a mais dura realidade: era
somente um rosto de uma moça, estática, durante uma hora, sendo exibido em
preto e branco.
O pessoal após ver a realidade, ficou com vergonha alheia um do outro, o
que determinou na decisão de que os vídeos seriam queimados, o povo não falaria
mais daquilo, e a história seria sepultada para sempre.
O professor, o jovem que sempre soube que o reality show era uma fraude,
volta após um longo pensamento, faz uma pausa, e responde:
- Não meu filho, isso nunca aconteceu, é apenas um conto da cidadezinha
para tornar a região um pouco mais conhecida...
Mas há 50 anos aconteceu algo terrível, a cidade era socialista
comunista, o progresso de intelecto, de crescimento pessoal, de sabedoria
passava longe do local, o que não ocorre pela totalidade hoje, pois pelo menos
há um pouco mais de tecnologia e informação, e um menor índice de socialismo na
região.
O professor até hoje tem vergonha do fato ocorrido há 50 anos, algo
imaginável aconteceu: um reality show bizarro, banal, e sem sentido, alienou
uma cidade inteira.
O trabalho O Reality Show de Júlio César Anjos foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em efeitoorloff.blogspot.com.
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